terça-feira, 23 de dezembro de 2014

No meu dia de hincha, Racing campeão em meio a uma onda de amor incondicional



Noite do domingo 23 de novembro, o Racing Club acabara de vencer o River Plate por 1 a 0, superando o rival na classificação. Ali já sabia qual seria minha primeira tarefa na semana que estava por começar: comprar passagens para Buenos Aires. Motivo: ir ao Cilindro de Avellaneda ver a Academia campeã argentina pela segunda vez em 48 anos. E assim foi feito. Antes, era preciso vencer o Central, em Rosário, para levar a vantagem de dois pontos à última rodada, em casa, contra o Godoy Cruz. Metemos 3 a 0.
MAURO CEZAR PEREIRA
Pequena torcedora no Obelisco
Pequena torcedora no Obelisco: campeón
Devido à participação na final da Copa Sul-americana, o River pediu o adiamento de seu compromisso derradeiro, em Quilmes, e a AFA também protelou em uma semana a peleja do Racing. Os jogos estavam conectados. Os Milionários, em segundo, dependiam de um tropeço racinguista para provocar o cotejo extra ou mesmo abocanhar o título nacional de forma consecutiva. A decisão da Associação de Futebol Argentino me custou bons reais de multa cobrada pela companhia aérea pela mudança de data da viagem. E daí?
A partir de agora, vale a ressalva: se você é apaixonado por futebol e não vive sem a cultura da arquibancada, leia este post com tempo e calma. Observe cada foto, veja vídeo por vídeo até o final. Assim talvez o blog consiga lhe passar pelo menos parte da experiência vivida em meio a essa gente que ama um clube como poucos são capazes.
Sigo o Racing desde 1992 — clique aqui e entenda — e jamais me perdoaria se não fosse à peleja que resultou no primeiro campeonato argentino do clube em seu estádio depois de quase meio século. Título que encerrou um jejum de 13 anos. Certame conquistado numa reação espetacular, seis vitórias em seqüência, oito em nove partidas, 25 pontos em 27 possíveis, arrancada iniciada após uma derrota por 2 a 0 em Avellaneda para o Atlético Rafaela. Placar desalentador que veio depois de triunfos fora de casa ante Boca Juniors e Belgrano. Mas que não tirou o Racing de seu caminho.
MAURO CEZAR PEREIRA
Chegada do ônibus com os jogadores da Academia a Avellaneda: festa na rua
Chegada do ônibus com os jogadores da Academia a Avellaneda: festa na rua
Estar em Buenos Aires no dia 14 de dezembro de 2014 valeu cada centavo investido nesse rápido e inesquecível deslocamento à bela capital argentina. Cidade que respira futebol num país onde se aprende desde menino a alentar, alentar e alentar. É assim que eles vêem seus times, participam dos jogos, "entram" em campo. Os do Racing têm característica especial: seguem absolutamente apaixonados e fiéis ao time que pouco, pouquíssimo lhes ofertou nas últimas décadas. E isso me fascina.
MAURO CEZAR PEREIRA
Bandeira de La Guardia Imperial é aberto no Cilindro no momento do recibimiento...
Bandeira de La Guardia Imperial é aberto no Cilindro no momento do recibimiento...
MAURO CEZAR PEREIRA
...do time de Avellaneda na entrada em campo para o jogo contra o Godoy Cruz
...do time de Avellaneda na entrada em campo para o jogo contra o Godoy Cruz
Cheguei ao local da histórica partida pouco menos de quatro horas antes de a bola rolar. Gravei boletins para a ESPN com o intuito de levar às pessoas no Brasil uma noção do que se passava e o que estava por acontecer. Da Avenida Adolfo Alsina, ao lado da cancha, já era possível ouvir os cânticos da hinchada azul e branca que vinham lá de dentro e ecoavam pelo bairro. Canto forte e emocionado de quem há tanto tempo esperava pelo momento que se aproximava lentamente. Expectativa e tensão faziam o relógio trabalhar mais devagar.
Enquanto falava diante do câmera argentino da ESPN Sur, hinchas notavam a bandeirinha do Brasil estampada na manga direita da camisa da emissora e perguntavam o que eu esperava do jogo. Queriam saber qual o meu time, e quando ouviam a resposta, "Racing", reagiam entre a incredulidade e a euforia. "¿Por qué Racing?", inistiam. "Por que não?", retrucava. Ganhei abraços, beijos, saudações, cumprimentos. Foi um festival de camisetas levantadas e pernas de calças puxadas para cima com os torcedores e torcedoras fazendo questão de mostrar tatuagens homenageando "El Primer Grande".
Superada tal etapa, não entrei imediatamente no Cilindro, preferi caminhar pelas imediações observando o movimento. Gravei algumas palavras para um documentário sobre a paixão pelo Racing (sobre isso darei mais detalhes em 2015, oportunamente) e caminhei até a Avenida Mitre, onde camelôs vendiam produtos do clube. Não vi camisas, bandeiras tampouco faixas com a palavra "campeón". Todo cuidado é pouco para quem já sofreu decepções das mais diversas, como ser rebaixado e ver o maior rival campeão ao mesmo tempo. Sim, teve isso — clique aqui e leia.
MAURO CEZAR PEREIRA
Tensão nos instantes finais do jogo no Cilindro de Avellaneda contra o Godoy Cruz
Tensão nos instantes finais do jogo no Cilindro de Avellaneda contra o Godoy Cruz
MAURO CEZAR PEREIRA
Jogadores do Racing fazem a festa no pódio após a conquista do título argentino de 2014
Jogadores do Racing fazem a festa no pódio após a conquista do título argentino de 2014
De repente surge um ônibus em meio a sirenes e muita agitação na grande via de Avellaneda. Era a delegação blanquiceleste, rapidamente cercada pelos fanáticos alucinados. Lá dentro, jogadores não usavam os indefectíveis fones de ouvido. Nada disso. Eles seguiam a pegada do povo, batiam no vidro e cantavam junto com a torcida mexendo o outro braço na velha cadência conhecida dos hinchas.
Tenes que salir campeon este año
Ustedes poniendo huevo y yo alentando
Hace ya mucho tiempo
Que la vuelta yo quiero dar
Este año academia no me podes fallar
Vamo Acade, vamo Acade
Vamo Acade, vamo Acadeeeeeee
Pouco metros atrás, outros coletivos, esses velhos, lotados e com alguns malucos em cima do teto. Motoristas buzinavam sem parar e os carros tumultuavam a região em meio a bandeiras, camisas e chapéus azuis e brancos. A loucura tomava as ruas num misto de euforia, expectativa e idolatria aos homens que tinham nos pés a chance de ofertar àquela gente uma das maiores (ou a maior!?) alegrias de suas vidas. O que estava por acontecer era algo muito grande, ainda mais intenso e marcante do que poderia imaginar antes de ali chegar.
Para o estádio, então. Lá dentro, cerca de duas horas antes de rolar a pelota, tudo lotado. Lembrei do velho Maracanã em suas grandes tardes e noites de 170 mil pessoas. Desconfortável, sim. Apertado, claro. Mas quem ligava? Ali uma ampla e espaçosa poltrona não teria muito valor. O objetivo era ver a Academia. Estar em meio à sua própria gente. Como tantas vezes fiz no passado, pedi licença ali, uma desviada acolá e estava, enfim, no setor destinado à imprensa, pois me credenciara.
Lá, jornalistas e torcedores se misturavam. Uma bagunça, sem dúvida, mas dentro daquele contexto, nada mal. Estranhei inicialmente, mas em poucos minutos percebi que tal ambiente apenas me favoreceria. Sim, eu estava ali para torcer. Viajei com o intuito de ver a história, participar dela e contar minha experiência. Nas circunstâncias não havia motivo para que o manto azul e branco continuasse na mochila. Arranquei-o de lá e vesti o fardamento do Racing por cima da camisa. E fui tirar minha foto (semselfie, óbvio) para registrar o momento de enorme importância. Virou avatar no Twitter.
Uma atmosfera incrível com o Cilindro todo azul e branco e pessoas de todas as idades, de recém-nascidos a velhos racinguistas com 80 anos ou mais. Dos bebês nos colos dos pais aos homens cansados que se apoiavam e bengalas para subir um degrau de arquibancada sendo ajudados pelos demais. Outros, com gessos ou talas, com ou sem muletas, também superavam tais obstáculos para marcar presença. Não me lembro, na vida, de ter visto tanta gente de perna quebrada em tão pouco tempo. Idade, lesões, contratempos, nada era problema grande o bastante.
Em dado momento, o locutor pede no sistema de som que as pessoas se acomodem de maneira que permitam a entrada daqueles que ainda estavam fora do estádio. E eram muitos. Mas como? Aparentemente não cabia mais ninguém. Lembrei que no Brasil também já foi assim, e que sempre se dava um jeito. Sim, entendo que não é o ideal e que tamanho desconforto pode oferecer riscos. Mas confesso que foi demais sentir novamente a atmosfera do velho estádio entupido de gente apaixonada por seu time, se espremendo para vê-lo. E para apoiá-lo. Enfim, Racing na cancha e o recibimiento.
O jogo foi tenso. Os muitos anos de jejum, raras conquistas e muito sofrimento pesaram. Os hinchas alentavam e ao mesmo tempo revelavam a própria preocupação nos semblantes e gestos. Em campo, o time jogava bem, criava chances e parecia ter a paciência necessária ante um Godoy Cruz que fazia cêra desde o início e estava interessado no resultado. Nem parecia a equipe que perdeu seu compromisso anterior por 3 a 0, em casa, frente ao Olimpo, com todos os gols nos primeiros 45 minutos.
Haveria uma "maleta blanca" do River Plate? Era possível. Ao mesmo tempo, fora de casa, o campeão da Copa Sul-americana enfrentava o Quilmes. Precisava vencer e torcer pelo empate do Racing para que um jogo extra fosse agendado, ou mesmo levantar a taça caso o Godoy Cruz vencesse em Avellaneda. Ir para o intervalo com 0 a 0 nos dois cotejos foi complicado. Havia o receio de que algo não desse certo, embora os gritos de apoio continuassem e os jogadores fizessem o que era necessário.
Até que Gastón Díaz desenvolveu grande jogada pela direita, a exemplo do lance que originou o tento da vitória sobre o River três semanas antes. O cabeceio de Ricardo Centurión a exatos 3 minutos e 13 segundos da etapa final resultou num dos maiores urros de "GOL" que testemunhei. E gritei! Um puta alívio. Justo para "essa gente sofrida de Avellaneda e de Racing", resumiu Mariano Closs, pela Rádio América.
Veio a reação imediata dos hinchas no cântico simples e bonito...
♪La Acadé, la Acadé, la Acadé.
La Acadé te vinimos a ver.
Te llevamos en el corazón,
Te queremos ver campeón!♫
Os minutos finais foram preocupantes. Em Quilmes o River Plate abrira o placar a oito minutos do final, ou seja, o Racing não poderia sofrer o empate. A equipe recuou e a tensão aumentou. O Godoy Cruz não criou qualquer situação clara, mas rondava a meta do arqueiro Saja e o risco existia. Com fogos, La Guardia Imperial, a maior barraracinguista, deu início à festa, que cresceu pouco a pouco, como o tradicional cântico...
Olé olé olé 
Olé olé olé olá 
Olé olé olé 
Cada dia te quiero mas 
Yo, soy de Racing 
Es un sentimiento 
No puedo parar
Camisas girando ao alto, grito mais e mais forte, gente subindo nos muros, grades e alambrados do velho e imponente Cilindro. O título era cada vez mais real, se concretizava. No apito final, lágrimas, alívio, euforia, gritos e uma onda de emoções. Como o futebol é maravilhoso! Aquelas pessoas dedicaram dias e dias de suas vidas, com fé, a um clube, por pura paixão. Esperavam apenas o que cantaram durante a peleja: Racing "campeón". Era difícil crer. Jovens viam o primeiro título de suas vidas.
Sí sí señores, yo soy de Racing
Yo soy de Racing, de corazón
Porque este año, de Avellaneda
De Avellaneda, salió el nuevo campeón
Foi uma das mais incríveis experiências que o futebol me proporcionou. Num primeiro momento, em 1992, era um simpatizante. Mais tarde a internet possibilitou acompanhar melhor o time. Passei a torcer e seguir bem mais, lendo e ouvindo as rádios argentinas, depois vendo ao vivo nos vídeos que sempre aparecem por aí.
Após voltar ao Cilindro de Avellaneda e testemunhar o Racing Club campeão, não tenho dúvida: a Academia e sua inigualável hinchada me conquistaram de vez. Para sempre carregarei, com orgulho, o fato de ter participado daquele domingo inesquecível. De ter alentado com eles. Sofrido com eles. Festejado com eles.
Um estádio lotado, transbordando gente, paixão, fé, devoção. Me senti como se fosse frequentador assíduo desde pequeno. Foi demais sentir a velha emoção, reviver minha juventude nas gerais e arquibancadas pelo Brasil, seguindo uma camisa, vibrando em meio aqueles que são como eu, os da mesma "religião". E, pena, estamos perdendo isso aqui no Brasil com suas arenas cheias de regras sobre como torcer.
MAURO CEZAR PEREIRA
Na cancha com o manto e no Obelisco: festa
Na cancha com o manto e no Obelisco: festa
De Avellaneda voltei ao coração de Buenos Aires. Milhares de hinchas o fizeram a pé pelos 7,6 quilômetros que separam o Cilindro do Obelisco. Na véspera, o ponto histórico da capital argentina, que concentra todo o tipo de manifestação, reuniu gente de todo o país por motivo bem diferente. O povo lá estava para celebrar o 31º aniversário da democracia após a sangrenta ditadura militar — cliqueaqui e veja um registro em vídeo.
Mas na noite de domingo, invadindo a segunda-feira, havia era festa, muita festa. E lá fiquei até quase 3 horas da madrugada na Avenida 9 de Julho, agitando minha bandeira, cantando com os hinchas e aprendendo com eles Toda espera e sofrimento com o time durante anos teve, enfim, a recompensa. Tudo num fim de semana marcado por esse amor incondicional.Gracias, muchas gracias, querida La Acadé!
Todos los domingos 
cuelgo la bandera 
Voy a ver a racing 
En Avellaneda 
Yo lo llevo adentro 
De mi corazon 
Porque la Academia 
Va a salir campeón 
Me siento bien y yo tambien 
Me siento bien 
Y yo tambien 
Vamos La Academia me siento bien 
Boca boton 
Boca boton 
Boca boton 
Boca boton 
Este año racing sale campeon
MAURO CEZAR PEREIRA
Pais com filhos pequenos no setor popular do Cilindro, semelhante à extinta geral do Maracanã
Pais com filhos pequenos no setor popular, semelhante à extinta geral do Maracanã
MAURO CEZAR PEREIRA
Torcedores sobre o muro que separa o campo da platéia acompanham a partida
Torcedores sobre o muro que separa o campo da platéia acompanham a partida
MAURO CEZAR PEREIRA
Visão do blogueiro a partir do local de onde acompanhou (e torceu), perto da meta do gol do jogo
Visão do blogueiro a partir do local de onde torceu, perto da meta do gol do jogo
MAURO CEZAR PEREIRA
Volta olímpica: hinchas se penduram nas grades e sobem nas muretas para festejar Milito
Volta olímpica: hinchas se penduram nas grades e sobem nas muretas para festejar Milito
MAURO CEZAR PEREIRA
Hinchas do Racing tomam conta do Obelisco na Avenida 9 de Julho em Buenos Aires
Hinchas do Racing tomam conta do Obelisco na Avenida 9 de Julho em Buenos Aires