sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Quem sai aos seus não degenera: Francisco Bosco e o caso Fred

Eram animados os domingos da Casa da Dinda. Até a casa cair, Fernando Collor promovia espetáculos midiáticos, mandando mensagens através das camisas que usava para corridas. Quando o mar de lama começou a inundar o lago com cascata artificial, com a cara de pau que lhe era peculiar, o ex-caçador de marajás tascou uma camisa com os dizeres proustianos: “O tempo é o senhor da razão”. Como se tudo fosse ser esclarecido. Tinha até certa razão mesmo. Tudo foi esclarecido e ele acabou sendo defenestrado do poder, chafurdado num lodaçal.

Collor à parte, o tempo geralmente é mesmo senhor da razão. Quando a poeira baixa, normalmente vem à tona a verdade dos fatos. O caso dos Manjas tem sido exemplar. Tragicamente, foi preciso um caso extremo de agressão e perseguição para que finalmente olhos e ouvidos gerais se abrissem para a aberração. Tratamos muito disso aqui, sob vários enfoques. A exacerbação e a violência, alimentada em atos-manjas e na divulgação irresponsável de “Disques-Denúncias” era uma tragédia anunciada. O cinismo que tentava justificar atos-manjas com a inacreditável desculpa do “justificado se prejudica o desempenho” foi amplamente tratado aqui e por muitos, e também parece não ser possível mais ser aceito.

Por trás do jornalismo-manja, qualquer que seja a falácia e a tentativa algumas vezes até de posar de manual de jornalismo (e que jornalismo!!!), estará sempre a mediocridade e a necessidade de vender, aparecer. Citamos Clóvis Rossi aqui sobre o tema. Conversamos com Eduardo Galeano. Tal hipocrisia e cinismo não era mais possível. Ainda mais quando lembramos de casos célebres do jornalismo-manja, no esplendor do sensacionalismo. Como um caso célebre, quando se insinuou, com todas as letras, que um conhecido jogador estaria num carro namorando um pagodeiro. Todo mundo sabia que era invenção deslavada e sórdida (mesmo que fosse verdade, obviamente seria uma questão do atleta). Mas derrubava por água abaixo o cinismo de justificar entrar na vida alheia pelo tal “atrapalhar desempenho”. Ora, o sujeito “manja”, como no inacreditável caso, manja para aparecer e vender mesmo. Descontar seus recalques e sua incapacidade de fazer algo melhor no ofício.

O caso Fred abre um novo momento. Desde então, ficou mais constrangedor ser manja. A grita de quem ainda acredita que o ofício do jornalismo deve ser algo mais digno foi forte. Com o tempo passa, infelizmente, e a curiosidade da sociedade de espetáculo alimenta os que tem caráter tão flácido. Mas por enquanto há algo de podre no reino manja.

O caso Fred tem ainda alguma outra coisa favorável, se é possível algo tão inescrupuloso ter algo favorável. É que foi preciso o foco manja virar para um jogador branco, que não nasceu na favela, mineiro repaginado no surfe de Ipanema, para o debate se impor. Por muito tempo, o foco era Adriano. Era fácil desqualificar Adriano, tratamos isso aqui tantas vezes. Quinhentos anos de Casa Grande e Senzala pesavam no debate. Negro, favelado é bandido para os da Casa Grande. Portanto, era fácil desqualificar Adriano, repito. Sem qualquer prova, apesar de dois anos de escuta da polícia para nada, inquéritos, depoimentos mil, dizia-se que Adriano era bandido e pronto. O debate sobre público e privado tornava-se supérfluo. Assim, desqualificada a outra parte, o outro, tudo é permitido. Manjar sem pudor, cuidar da vida alheia, tecer comentários utilizando cinicamente a tal “cláusula desempenho” da bíblia manja.

Aqui o tempo foi senhor da razão também. Não era fácil o canto do ringue quando falar sobre alguém que a Casa Grande desqualificou está no centro do debate. Mas o caso Fred tem ainda essa vantagem. Com Adriano, negro e favelado, não era possível desnudar os manjas. Mas a palavra definitiva fica para Francisco Bosco, que vem ocupando magistralmente as páginas do Segundo Caderno do Globo nas quartas-feiras e foi definitivo sobre os acontecimentos e a tragédia que vivemos com o jornalismo-manja em sua última coluna, de 10/8/2011. Separei alguns pedaços. O título dos tópicos são por minha conta e abuso. Desfrutem as palavras de Francisco Bosco, pendurem em frente ao computador, vale a pena.


O EPISÓDIO FRED

“Esse episódio merece um repúdio veemente, irrestrito e incondicional. Não é o que a imprensa vem fazendo.”


PÚBLICO X PRIVADO

“O direito à privacidade não tem condicionantes. Se um jogador conduz sua vida privada de modo a que ela prejudique seu desempenho profissional, é exclusivamente no âmbito profissional que isso deve ser criticado e que ele deve sofrer as conseqüências: os torcedores vaiem, os jornalistas critiquem, o valor de mercado caia. Qualquer extrapolação para a vida privada deve ser repudiada e, em casos como o de Fred, levada à polícia”.


ÔNUS DA FAMA

“O argumento de que celebridades têm que arcar com o “ônus” da fama é inaceitável. Se há uma estrutura injusta no capitalismo globalizado, que concentra brutalmente a renda, elas não são culpadas por isso. Há uma revanche ela mesma imaginária nesse argumento, que legitimaria as perseguições de torcedores a jogadores: “eles são ricos e famosos, então devem andar na linha”, isto é, não devem abusar das possibilidades de gozo que lhes são oferecidas, senão devem ser punidos.”


OS MANJAS!

“Jornalistas que admitem que “desvios” de conduta na vida privada (que podem prejudicar o desempenho público) são passíveis de cobranças na vida privada deviam considerar que o papel público de suas profissões é muito mais importante do que o dos jogadores. Se, entretanto, eles tiverem apurado mal uma matéria porque tinham bebido na noite anterior e estavam de ressaca, creio que não gostariam de que um bando de assinantes do jornal ameaçassem-nos na porta de suas casas. Cabe ao leitor suspeitar de sua credibilidade; e, ao jornal, adverti-los ou demiti-los em caso de reincidências.”


A ILEGALIDADE MANJA

“Defender que jogadores de futebol sejam tratados de forma diferente porque são ricos e famosos é assumir uma posição de espírito não legalista, já que discriminatória, e deixar-se levar pelos mesmos princípios imaginários dos torcedores com que Fred recusou-se, corajosamente, a conversar”.