quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

A noite em que o Homem-Inspiração foi mais transpiração. O animador início de Ronaldinho Gaúcho

O caminhão para no meio da noite, estrada deserta. Meus anfitriões saem correndo mata adentro atrás de um tamanduá. Voltam triunfantes com o jantar garantido. Chegamos na aldeia indígena, no meio do Araguaia, com uma enorme comemoração. Pelo jantar, logo preparado em uma fogueira. Vísceras, miolos, tudo é iguaria. A hospitalidade xavante me poupa dos miúdos, e uma generosa coxa é apresentada como presente nobre. Melhor ir dormir na minha oca, tinha tudo para ser uma viagem infernal. Mas o sol da manhã muda imediatamente minha percepção, impossível esquecer a cena: quatro peladas ao mesmo tempo rolando na aldeia. A dos mais velhos, a das mulheres, a dos adolescentes e a das crianças. A visão espetacular apressa o inicio do trabalho, acordo o cinegrafista correndo. Não dava para perder aquilo!

Xavantes são ardorosos combatentes pela tradição e manutenção dos hábitos e culturas da tribo. Mantém rituais seculares, passam de pai para filho. Como de hábito entre povos que vivem entre a defesa de duas tradições e a presença do invasor, a questão do idioma funciona mais ou menos assim: os mais velhos falam apenas o idioma nativo. A geração intermediária aprendeu como segunda língua a do invasor, colonizador. E os bem mais novos, até os sete, oito anos, ainda não falam a língua estrangeira, que aprenderão. Chego para gravar a pelada dos miúdos. E o resultado é algo impressionante demais, avassalador e definitivo para entender a força de um símbolo e ídolo que cruzara qualquer fronteira: todo pequeno xavante quando pegava na bola repetia as únicas palavras que conheciam em português: “Ronaldinho Gaúcho”. E seguiam conduzindo a bola, narrando o resto e brincando em xavante. Mas o ídolo estava lá, em bom português. Como qualquer criança espanhola, africana, japonesa. “Ronaldinho Gaúcho” era o cara a ser imitado.

O filme voltou a cabeça ontem. Ainda não deu para dimensionar completamente a força que terá a passagem de “Ronaldinho Gaúcho” pelo Flamengo. Mas minhas suspeitas de que veremos uma onda avassaladora ganharam cores fortes após a partida de ontem. (ou melhor: antes do jogo, durante e depois, o Rio viu verdadeira comoção pela estreia de Ronaldinho Gaúcho) A química está estabelecida. O caminho para a formação de uma nova geração de torcedores e expansão está aberto. Como tsunami atrás de uma força da natureza: “Ronaldinho Gaúcho”.

Exagero? O que leva a tal reflexão? Apenas a modesta partida de ontem? Pode ser. Mas ao observador cabe tentar identificar alguns sinais e projetar. Erra-se aqui, acerta-se ali, mas esse é o caminho. E o tal “Ronaldinho Gaúcho” parece disposto a viver com intensidade esse novo papel. São apenas sinais nesse sentido. Mas são claros. Pois então vejamos:

- Para desespero dos jornalistas-manja, o camarada tem se dedicado fortemente aos treinamentos e preparação, desde a pré-temporada. Espero sinceramente que ele volte a ter algumas incursões pela noite, apareça com popozudas, vá mais ao samba. Não gosto de máquinas. Prefiro o humano, demasiadamente humano, como disse o filósofo. E ele foi “Ronaldinho Gaúcho” fazendo isso tudo.

- O craque optou no jogo de estreia pelo caminho das pedras. No lugar do brilho fácil, dos dois ou três lances de efeito que poderia ter tentado e que seriam consagradores, ainda que sem maiores desdobramentos e produtividade, optou pelo coletivo, pelo suor, divididas, servir os companheiros. Correu quase nove quilômetros mesmo estando sem jogar há algum tempo, nem de longe optou pelo refúgio mais tranqüilo do lado esquerdo, voltou quando necessário. E, não me lembro de outra vez em sua carreira, assumiu o papel de líder não apenas técnico, mas fez jus a nova condição de capitão passando instruções, orientando, cobrando. Estava absolutamente concentrado, e logo viu que tinha um adversário em campo e que a festa tinha acabado. É preciso frisar o aspecto do suor: nos últimos tempos, nas muitas vezes em que a coisa não andava, optou pelo talento em excesso que sempre transbordou ali para resolver tudo na base do safar a própria pele com um lençol, um drible debaixo da perna, uma jogada de efeito espetacular e pronto. Estava garantido nos melhores momentos da partida e pronto. Em sua estreia rubro-negra, optou pelo resultado e suor se a coisa não fluía ainda muito fácil. Sem se preocupar com o julgamento dos outros. Ainda assim, sua enorme categoria é capaz de criar dois ou três lances de imensa clarividência, muito à frente dos outros, e com um toque deixar um companheiro na cara do gol.

- A imagem espetacular do fim do jogo não deixa dúvidas: a reverência pela torcida, o agradecimento, a emoção, coisas de quem chegou para ser protagonista, de quem quer de volta seu papel de xerife. E de quem se mostrou disposto a suar por isso, esse, como já disse, o grande fato da noite de sua estreia.

- Se como disse o papel que nos cabe nesse latifúndio é tentar entender e traduzir algumas coisas, identificar pistas mesmo que contrariem o senso comum e a paixão do torcedor, sigo com minha intuição de que esse caminho Ronaldinho-Vanderlei Luxemburgo está longe de ser um mar de rosas. E que turbulências são iminentes. Oxalá para o rubro-negro que essas suspeitas fiquem pelo caminho, mas vale a pena percorrer algumas pistas. Com o protagonismo que será cada vez maior do craque, e como falei tem tudo para virar uma tsunami, não consigo imaginar Vanderlei Luxemburgo feliz com esse papel de coadjuvante. Sempre adorou entrar no saloon para desafiar o mocinho. Sempre fez questão de se posicionar como a estrela da companhia. Difícil imaginar que amadureceu antes tarde do que nunca. E a pré-temporada em Londrina teve um desses momentos em que as pistas para se analisar algo são lançadas. Pois então vejamos: desde que havia chegado ao Flamengo, e isso já tinha uns bons dois meses, o treinador andava quieto, sem ir a programas ou grandes entrevistas. A presença de Ronaldinho Gaúcho e os holofotes todos para o craque foram insuportáveis para o treinador. Os colegas em Londrina contam seu desespero para ocupar seu quinhão no noticiário. A súbita boa vontade para longas exclusivas, ocupação de espaço na mídia. Na mesma semana voltou aos programas de tv com seus shows peculiares. Em outra conversa com colegas, manifestou sua rusga de preocupação. Sabe que bater de frente com a estrela da companhia é endereço da rua. E sabe que ao se olhar no espelho não suporta que exista alguém com mais luz do que ele. O tempo dirá se aprendeu a lidar com isso. Por enquanto, meu leve palpite é que ainda morre um pouco quando vê holofotes em outra direção. A ver...Por enquanto, são apenas impressões muito superficiais, indícios...

- A opção de Ronaldinho pelo suor, pela transpiração no lugar da inspiração fugaz e muitas vezes de brilho falso podem levá-lo novamente ao caminho da imensa inspiração. Já disse minha opinião sobre o que aconteceu com o craque. Novamente uma hipótese, um exercício de cenários, desenhados a partir de alguma informação. Meu palpite, quase leviano, sem qualquer embasamento cientifico, é que Ronaldinho viveu uma grande depressão no pós-Copa de 2006. Faltavam apenas sete jogos para que mudasse definitivamente, por toda e para toda história. Sete jogos de glória na Copa e iria ser chamado de Maradona, Pelé...Certo ou errado, o céu era o limite. Vivera quatro anos de um brilho realmente dificilmente igualável. Faltavam sete jogos para a glória definitiva. Deu tudo errado. Fontes boas me dão conta que o Ronaldinho Gaúcho do vestiário pós derrota contra a França e dos dias seguintes era um homem fora de órbita, catatônico. A fuga foram as noitadas, tentar esquecer aquilo. Nesse caminho depressivo, veio a insegurança, que se abateu sobre o futebol exuberante. É humanamente compreensível: um homem a sete jogos do Olimpo...Dá tudo errado...Como seguir? Leonardo no Milan conseguiu alguns progressos nessa cura, nesse resgate de confiança. A cura definitiva pode estar a caminho. Não terá a mesma força de antes. Mas o indício da vontade de suar, de transpirar novamente, é bom indício de que pode voltar a ser genialmente inspirado.

PS1-
NO FORNO: nos próximos dias, na tv e aqui no blog, trocaremos algumas ideias sobre o Haiti, onde estive fazendo um especial que vai ao ar em breve.

PS2- Nossa resenha volta também em breve no BB1. Saudade de interromper o João Canalha e de levar o bom Fernando Victorino ao desespero estourando o tempo.