terça-feira, 4 de outubro de 2011

Costa Rica: "tão longe de Deus, tão perto dos EUA"

Já se vão uns três, quatro anos. Estava nos Estados Unidos para uma reportagem sobre a máfia das apostas no esporte. O nome Costa Rica aparecia em todas as conversas. Michael Franzese, o poderoso chefão da Cosa Nostra em Nova Iorque nos anos 80, o príncipe de Long Island, foi taxativo no bate-papo pós-entrevista, numa cidade pequena escolhida por ele: “se quiser entender mesmo como funciona a máfia das apostas, dá um pulo aqui pertinho, na Costa Rica. É lá que está toda a operação dos Sporbooks que manejam as apostas”.

Dica dada, restava aquela velha queda de braço com editores para convencê-los de que a escala e a despesa valia a pena. Autorização dada, chegava a hora de realizar uma antiga vontade: Costa Rica.
Na cabeça, os versos de Milton Nascimento exaltando o país quase ingênuo, o coração civil. Algo que se desfez rapidamente correndo os subterrâneos do pequeno país, saindo um pouco daquela rota turística que sempre encobre as mazelas de um lugar.

Máfia, turismo sexual, estado corrompido pelos mafiosos estabelecidos no país, meninas menores de idade se adequando aos padrões estéticos americanos de beleza para vender seus corpos aos turistas, assassinatos, imprensa pressionada pela máfia é o quadro que se encontra ao se tirar um pouco a primeira camada de tinta. Na volta, além do documentário sobre a máfia das apostas, escrevi para um site de reportagens especiais do qual participava com alguns bons amigos que queriam um espaço para fazer tudo o que não cabia no trabalho do dia a dia das redações. Segue o relato dessa Costa Rica, adversário do Brasil na próxima sexta, que lamentavelmente vai se transformando na Tailândia da América. Dito pelos próprios nativos, vítimas do drama de estarem a duas horas e pouco de Houston, Texas.


A GEOGRAFIA DA GLOBALIZAÇÃO: COMO A TAILÂNDIA FOI PARA NA AMÉRICA CENTRAL


Aeroporto Intercontinental George Bush, Houston, Estados Unidos. A fila formada no portão que indica o avião para São José, na Costa Rica chama atenção. Há muito mais coisa no ar do que os óbvios aviões de carreira, que afinal, deveriam estar mesmo por ali. Pelo menos 80% dos que aguardam o embarque são homens. Para lá de cinqüentões, o que elimina a possível explicação de tamanho desequilíbrio entre os sexos pelo embarque de um time de futebol, basquete ou beisebol. Os vovôs texanos são barulhentos, qual meninos em excursão colegial. Um mistério para um desavisado que certamente não imaginaria a companhia de duzentos cowboys à caráter, botas e chapéus pelos ares. Mas que logo será desfeito.

A viagem é rápida, céu de brigadeiro para alegria dos Johns Waynes cada vez mais agitados. Menos de três horas depois, a aeronave taxia na pista do Aeroporto Juan Santamaria. Pelos comentários captados pelo ouvido curioso, muitos ali repetem a viagem todo mês, transformando o trecho numa rotineira ponte aérea Texas-São José. Ida e volta por menos de duzentos dólares, menos de três horas, um país com níveis de segurança melhores do que os vizinhos...

Na fila da imigração, é possível perceber a ansiedade maior do senhor das bochechas vermelhas. Como um adolescente em seu primeiro passeio, pergunta tudo a um dos veteranos da excursão. Doze dólares o táxi entre o distante aeroporto, situado em Alajuela, cidade-dormitório de São José e o hotel no centro da capital? A risada irrompe o salão, frio e monótono como convém a toda alfândega. Segue o questionário de preços. Jantar com bom filé e cerveja? Tome risada. Táxi para a praia mais próxima da capital? Mais risos. E eis que o mistério que havia começado ainda no aeroporto americano começa a se desfazer, antes mesmo de se cruzar o portão. A pergunta vem nos mesmo tom que viera a do táxi, a do filé e a da cerveja. “E as meninas, quanto custam”?, dispara, um segundo antes da mais estrepitosa risada. A animação ao saber que existe uma margem de negociação para os 100 dólares que serão pedidos inicialmente, indica mais um novo usuário da tal ponte aérea. Tudo isso com direito a juras de amor, e emoções há muito não vividas no fastidioso rancho texano onde a maior adrenalina é saber a cotação diária do amendoim. Já não há mais dúvidas sobre a razão da predominância masculina entre os que tomaram o avião.

Ainda que a paisagem natural e a hospitalidade da gente tica, como são chamados os que nascem na Costa Rica, confirmem a áurea de charme que cerca o pequeno país centro-americano, espremido entre a Nicarágua e o Panamá, e os índices de desenvolvimento humano conservem o país em um honroso 47° lugar entre as nações, feito bem razoável para quem está abaixo do Rio Grande, o olhar atento para a paisagem humana acaba por concluir que aqueles tempos em que Milton Nascimento cantava “Quero a utopia...a felicidade nos olhos de um pai...São José da Costa Rica, coração civil...” são versos de um tempo que vai ficando para trás.

As páginas do diário abertas na banca da capital trazem o triste diagnóstico da nova era, estampando em letras garrafais o apelido que começaram a carregar no início dos anos 90: “Costa Rica, Tailândia del patio trasero de los Estados Unidos”. Um veredito duro e cortante como o que se vai encontrando nas esquinas.

Se duas décadas transformaram a antiga referência de utopia do poeta mineiro em uma Nova Tailândia, a meca asiática do turismo sexual, é fácil entender que o mercado se adequou a demanda e ao gosto do freguês, no caso aqueles John Waynes que lotavam o vôo entre Houston e São José, agora multiplicados por milhares, soltos pelas ruas a repetir as gargalhadas com os preços.

A tal adequação do mercado, obedecendo a elementar lei da oferta que se esforça para satisfazer a procura, responde por uma chocante constatação, uma quase peça de ficção, uma pintura surreal, que talvez nem o mais brilhante autor do gênero imaginasse: para as dezenas de meninas empurradas para a prostituição por uma demanda que chega aos borbotões na ponte aérea entre o primeiro e o terceiro mundo, tão primordial quanto comer e respirar, é ostentar um par de seios turbinados por enormes bolas de silicone. Uma questão de mercado, cruel como quase todas são. No lugar dos antigos sonhos de menina, as ainda meninas idealizam os seios/sonhos de consumo que irão permitir negociar as horas de prazer combinadas com homens que poderiam chamar de avô, mas que a vida fez com que chamassem por adjetivos tão verdadeiros quanto os seios que ostentam.

“Antes de ter dinheiro para a operação, passava as noites no cassino dos hotéis encostada nas máquinas de caça-níquel, sobrando. Agora, toda noite arrumo um americano”, conta a menina que garante ter 19 anos, embora aparente 16. Por 2.500 dólares, repetiu o que as suas colegas de trabalho já haviam feito: próteses imensas, seios no padrão americano, contrariando uma preferência local familiar a ouvidos brasileiros: costarriquenhos admiram as mulheres mais indo do que vindo. Mas desde que a Nova Tailândia virou a Disney sexual dos texanos, elas passaram a se preocupar mais com o vindo.

O epicentro desta agitação é Parque Morazán, uma área que concentra bares, hotéis e cassinos, e o olho do furacão é o Hotel Del Rey, onde mais de 100 meninas circulam entre as famosas máquinas “tragamonedas”, roletas e mesas verdes onde rolam os dados. É possível que entre as 100 alguma não esteja adequada as exigências americanas de seios GGG, mas não foi encontrada. Pode parecer um número surreal, um disparate, mas a realidade que vai mudando a paisagem da Costa Rica é ainda mais surreal.

Para enfrentar a concorrência cada dia mais forte, as meninas de um tempo para cá passaram a aceitar um capricho dos gringos que, garantem, há pouco tempo não aceitavam. “Agora eles querem fazer o programa e nos filmar nuas, em poses eróticas. Antes não aceitávamos, até porque todas sabem que isso pode até acabar vendido no país deles, ou na internet. Mas algumas aceitaram, vai se fazer o que, quem não aceita perde o cliente”, conta Rita, uma morena de 26 anos que a noite envelheceu mais do que os anos biológicos, embora o peito pareça do último verão.

A concorrência não é só entre as ticas que aceitam filmagem e as que não aceitam. De uns tempos para cá, a notícia da Nova Tailândia cruzou as fronteiras. Mulheres de outros países centro-americanos, da América do Sul e dos caribenhos República Dominicana e Haiti já podem ser encontradas se prostituindo em São José. Organizações Não Governamentais como a “Paniamor” e a sueca “Save the Children” denunciam o tráfico de meninos e meninas de até 12 anos de outros países terceiro-mundistas para a Costa Rica com a finalidade de se tornarem escravos sexuais, atendendo ao mercado desses turistas.
A chegada de concorrência exógena incomoda e acirra o clima das pistas em alguns momentos. Mas o porvir pode ser ainda pior, e as prostitutas já se organizam para frear uma concorrência que consideram desleal: temem que o Tratado de Livre Comércio (TLC) em andamento com os Estados Unidos, traga inclusive americanas para disputar americanos. Na dúvida, ainda que pareça improvável, criaram a Frente de Meretrices Contra el TLC, juntando assim suas vozes pela campanha do “NO”, que organiza manifestações contrárias no país.

Enquanto isso, americanos seguem desembarcando em hordas diariamente. Ainda que a página da embaixada americana na Costa Rica (http://sanjose.usembassy.gov) liste 28 dicas de proteção que seus cidadão devem tomar no país e as 7 modalidades mais comuns de golpes aplicados por criminosos locais.
Sem mencionar entretanto, a chegada recente de americanos cujas atividades vão além daqueles que buscam o turismo sexual.

Alguns comprovadamente envolvidos com a máfia, que se instalaram na Costa Rica driblando a possibilidade da indústria das apostas no esporte pela internet, conhecida como sportbooks funcionar nos Estados Unidos, e hoje movimentam estimados 100 milhões de dólares anualmente. Membros das Famílias Bonnano, Luchese e Gambino, da Cosa Nostra, promovendo transferência irregular de dinheiro e financiamento de campanhas políticas, já comprovadas pelo próprio governo costa-riquenho, são outra ponta dos novos visitantes.

Fatos que levam qualquer visitante fora de um desses grupos, a atualizar mais uma vez as conhecidas palavras do mexicano Porfírio Dias, proferidas em um longínquo 1911 sobre seu país: “Coitado do México. Tão longe de Deus, tão perto dos Estados Unidos”. No decorrer do século que se seguiu, o adágio passou a ser usado tendo Cuba como personagem. Depois da Guerra Fria, do muro cair, e e com a tal globalização que aproximou tanto Houston de São José, já é tempo de incluir mais um personagem, revisando a sentença do mexicano. “Coitada da Costa Rica, tão longe de Deus, tão perto dos Estados Unidos...”