quarta-feira, 23 de março de 2011

A maior história de todos os tempos e os protagonistas de Mano

Nunca houve história maior e jamais existirá em nosso futebol. Uma das maiores da história da nação, transcendendo as quatro linhas. Brasil x Uruguai, final da Copa de 1950 é incomparável com qualquer outra coisa em nosso futebol. Nas palavras de Nelson Rodrigues, com seu peculiar e brilhante exagero, “uma tragédia pior do que a de Canudos”.

Todos os elementos de uma tragédia estavam lá, concentrados e ampliados no drama em si que já é o ritual do futebol. Os requisitos de Aristóteles para qualificar algo como tragédia sobravam em doses cavalares. Sobravam personagens maiores, e o final triste preconizado pelo filósofo, com destruição de um ou vários personagens foi o saldo maior daquele 16 de julho.

Barbosa, Bigode, Obdulio, Ghiggia...O Maracanã, tocado a toque de caixa para emoldurar o maior feito brasileiro em todos os tempos, a maior plateia da história de uma partida de futebol (que também jamais se repetirá), uma cidade e um país em festa desde a véspera, o título ganho antes da bola rolar, o oportunismo de políticos e cartolas...A majestade de um estádio, que foi muito além de cimento e tijolo, construído e símbolo de um país que saia da vida rural para a modernidade...Símbolo maior naqueles dias de um país que pretendia gritar ao mundo sua capacidade empreendedora, afirmar sua modernidade. Não são poucos historiadores, antropólogos e sociólogos a afirmar que os anos dourados e os “50 anos em 5” se inauguraram ali, naquele estádio mágico que agora destroem...

Uma tragédia que marcou a ferro e fogo personagens maiores, herois. Traumas eternos na vida de uma nação, quanto mais para esses homens. Virou obsessão na vida de muitos. Paulo Perdigão dedicou parte de sua vida remoendo essa tragédia. De sua obsessão, ficamos com “Anatomia de uma derrota”, obra maior. Foi ele também que chegou ao ponto de refazer a cena do gol de Gigghia.

Na recriação de Perdigão, a bola é defendida por Barbosa. Geneton Moraes Netto é outro obcecado por 1950, e nos deu “Dossiê 50”. Eduardo Galeano, com sua nobreza infinita, parece que estava do lado de cá da derrota e não entre os vencedores quando descreveu a tragédia.

Também para mim 1950 foi e ainda é algo mal resolvido, pequena obsessão desse modesto contador de histórias. Se o brilho não é o mesmo dos acima citados, a fixação pela história é a mesma. E que me persegue desde sempre, desde os primeiros passos na profissão.

Engatinhava ainda no ofício, foca mesmo, quando Brasil e Uruguai se enfrentaram no Maracanã, em 28 de junho de 2000, cinquenta redondos anos depois da fatídica partida. Começando no Jornal do Brasil, não fazia parte do esquema de cobertura da partida. Aquilo me consumia, não podia estar fora daquela noite tão especial, onde os fantasmas estariam todos passeando pelo Mário Filho. Me coçava, morria ouvindo as reuniões de pauta preparatórias para a partida. Sabe-se lá porque, naquela véspera, até Tostão adentrou a redação do saudoso JB e espiou a reunião. E eu de fora...

Num arroubo de coragem estagiária e obsessão, adentrei a salinha do chefe e pedi para fazer algum personagem do jogo. Disse que soubera que Gigghia estaria lá, queria fazer algo com ele, algum personagem. E num arroubo de falta de lucidez ou coragem, o velho Vicente Senna, jornalista dos bons e companheiro, me entregou a missão de fazer algo sobre esses personagens do entorno do jogo. Com o lembrete que estava depositando confiança em mim, simples estagiário, e que era responsabilidade dele...Algo pra gelar um estagiário...Mas eu amava demais aquela história, não ficaria de fora por nada...

Chego no Maracanã. Não existe jogo para mim. Procuro Gigghia alucinadamente. Cada minuto de bola rolando era menos um pra mim, o fracasso iminente, a sensação de que a profissão acabaria naquela noite crescendo...Quantas vezes me encostei na grade da tribuna e me perguntei a razão de ter chamado o jogo pra mim. Ou ainda algum motivo para, depois de velho, ter mudado de profissão...
O jogo acaba. Não tenho a menor ideia do que aconteceu em campo ou sequer do resultado. O fracasso era fato. Como iria encarar o bom Vicente que confiara em mim? E eu, crente que era um Gay Talese, ali, sem uma linha...Nessas horas os demônios crescem, tomam formas e tamanhos assustadores...

Nada mais me tirava a convicção de que O Globo, a concorrência, iria estampar na primeira página uma matéria com Gigghia. E eu constataria que ele esteve ali, no meu nariz, mas o foca perdeu...Conhecia de cor todos os textos dos jornais de 1950. O maravilhoso texto do grandíssimo e repórter maior Araújo Netto do dia seguinte da final de 50 parecia mais vivo do que nunca. Não me lembro de texto tão dramático, a descrição do Maracanã se esvaziando em silêncio. Cinquenta anos depois, o velho Maraca da minha infância se esvaziava silenciosamente novamente, como no texto de Araújo Netto daquele 16 de julho de 1950...

O Maracanã vai se apagando. Agora parece ficção mas é verdade. Não consigo me mover...Já não há mais ninguém ali...De repente, já nem sabia se era visão ou não, vejo Bigode quieto, amparado por um conhecido, começando a se retirar. Corro como quem acha um oásis no deserto.

Converso com ele, o mundo está salvo, ou pelo menos minha vida... E de repente, como outra visão, quem vem de lá, o Maracanã completamente deserto...Gigghia, o carrasco! Andando. Não acredito naquilo, os fantasmas maiores daquela minha obsessão conspirando para transformar a maior derrota da minha vida em algo mágico, maior...Peço para Bigode para irmos até Gigghia. É quando tenho a noção exata do que é um trauma. Uma frase que cortou a noite escura do Maracanã e meu coração.

O velho Bigode, de tantas batalhas, acusado e marcado anos por ter tomado um tapa jamais registrado de Obdulio me contém, vendo fantasmas em um Maracanã deserto: “Não posso ir. E se alguém me vir conversando com ele? Vão falar que fui frouxo, que entreguei”. Cinquenta anos depois, um tapa que ninguém sabe ao certo se existiu ainda doía na alma daquele senhor. Tiro o time. Maior do que qualquer matéria são alguns princípios e o respeito por uma dor...

Mas Gigghia faz a outra parte. Vem na direção de Bigode. Um abraço afetuoso. Peço algumas palavras. Com delicadeza, diz algo que jamais me esqueci. Fala sobre algo que diz muito sobre o tempo, as coisas que ficam menores com o andar dos anos, sobre a grandeza humana: “Já tem tempo demais aquilo tudo. Estamos velhos demais para ficar lembrando daquilo”, num providencial ato de gentileza e grandeza com o vencido.

Não tem tanto tempo assim mas não não existiam celulares com máquinas, ou digitais modernas. Eu não tinha máquina. Sem foto em jornal, aquilo era quase nada. Outra odisseia começa. O amigo de Bigode tinha máquina. Peço que tire uma foto daqueles dois monstros, um encontro num Maracanã deserto, só um foca como testemunha. A foto é feita. O amigo de Bigode quer dinheiro, e negocia longe do heroi, desconfio que Bigode nunca soube das intenções do amigo.

Encerra as negociações. Está num velho hotel na Lapa. Faço de tudo mas ele vai embora. Percorro todos os hoteis, moteis da Lapa na madrugada. O sofrimento que tinha virado benção volta a ser sofrimento. Encontro o hotel. O tal amigo me promete ir ao JB na tarde seguinte.

Queria negociar com a direção, e não comigo, claro. Mais 20 horas de sofrimento. Será que irá ao jornal? De tarde, Bigode e o amigo cruzam o sexto andar da Avenida Brasil 500. Conduzo eles para a direção, que naquele momento já devia fazer planos para encerrar a carreira daquele foca meio ensandecido. Aguardo o papo conversando com Bigode. Não resisto perguntar o que respondeu por 50 anos. “Você acha que se eu tivesse tomado aquele tapa eu não estaria brigando até agora?”.

No dia seguinte, dois depois do jogo, a foto e a história estão na primeira página, assinado, fato raro, muito mais para um foca. Tenho o jornal perdido em minha bagunça, ainda acho um dia...

Minha obsessão por 1950 seguiu. Poucos dias depois daquilo, peço pra fazer entrevista especial com Zizinho sobre 16 de julho de 1950, que iria completar 50 anos. O mestre desligou o telefone naqueles dias. O mundo queria falar com ele sobre o assunto. Com justa razão, ele querendo esquecer, o mundo querendo falar. De novo aquela sensação de “pra que fui me meter nisso?”. Tínhamos amigos em comum, o samba do Candongueiro a nos ligar. Consigo falar. Ele avisa que posso passar lá, mas não falaremos de 50...Então o que eu teria? Nada, claro. Arrisco...

No dia dos 50 anos, sem 1950 na pauta...Na primeira pergunta, amenidades, o Mestre bota o trauma toda pra fora. Puxa um desenho de própria autoria com os esquemas táticos de Brasil e Uruguai. E afirma: “Conhecia todo o esquema deles...E a gente perdeu!”.

Volto com uma página especial naquele dia dos 50 anos. Aquele fantasma que tanto sofrimento e obsessão me causa ainda foi sempre generoso comigo. De quebra, ainda me proporcionou tantas boas resenhas com Eduardo Galeano, e depois com o próprio Ziza. Muitas tardes em Niterói, de boa resenha e os salgados da Dona Rosani, e uns encontros no samba do Candongueiro.

1950 segue vivo em minha vida. Segue vivo na história desse país. Seguiu dramaticamente vivo como trauma até os últimos dias de Barbosa. Naquela cafajestada inominável de quando foi barrado na Granja Comary. Ou no dia em que Geneton quis entrar no gramado do Maracanã com ele. “Não, lá dentro não”, encerrou. Seguiu vivo em Bigode...

Lembrei disso tudo isso com a entrevista de Mano Menezes para a Folha de São Paulo. “Precisamos de protagonistas”, disse ele ao repórter Sérgio Rangel. Um time sempre precisa de protagonistas. Mas desconfio que, mais do que nunca, esse time de Mano vai precisar de protagonistas para 2014.

De bons jogadores, mas também de homens de coração e personalidade. Não se brinca com fantasmas. Eles estarão vivos e de plantão em 2014. Acho que Mano sabe disso. Triste daquele que acha que o mundo se explica só pela razão...

Mais do que os fantasmas, estarão de plantão na Copa de 2014 alguns dos piores exemplares da raça, fantasmas também. Fantasmas daqueles políticos que iam na concentração na véspera de jogos e falavam em títulos. Fantasmas daqueles que usam o futebol e a paixão de uma gente em benefício próprio. Fantasmas de uma escória que se locupleta do suor dos outros e só aparecem para a foto da vitória. Do contrário, na derrota, falam em “fraqueza psicológica dos brasileiros”, “raça inferior”, “gente que não aguenta pressão”. Que o lá de cima nos proteja dos fantasmas. Eles podem jogar com a gente, a vida me ensinou. Dos vivos, e dos muito vivos, devemos nós mesmo cuidar.