quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Refugiados

Quatro milhões de pessoas deixaram a Síria desde 2011 e até o final do ano este número chegará perto dos 4,3 milhões. Milhares tentam chegar à Europa e tomam as manchetes da imprensa mundial. O drama de famílias inteiras e fragmentadas que tentam escapar da guerra em busca de um porto minimamente seguro comove qualquer ser que faça jus a ser chamado de "humano". No começo do ano passado, aqui em Fortaleza, uma família foi detida pela Polícia Federal quando tentava embarcar para Portugal com passaportes falsos que teriam adquirido na Turquia. Eram sete sírios que receberam abrigo numa igreja até que a situação fosse resolvida.
A solidariedade dos brasileiros lhes permitiu esperar julgamento, que os absolveu sob a alegação de que adquiriram aqueles documentos na tentativa de escapar da guerra civil. E, concluiu a justiça, o grupo não representava perigo para a sociedade. Mas nem todas as nações parecem dispostas a ajudar àquela gente que procura desesperadamente sobreviver. Inclusive países da Europa, de onde muitos saíram na primeira metade do século passado, quando a segunda guerra mundial fez povos se espalharem até por pontos distantes, como o Brasil, repleto de imigrantes há décadas e hoje com descendentes que formam seguidas gerações.
Na Hungria se ergue um muro para impedir o avanço dos refugiados em direção ao território europeu e o primeiro ministro britânico, David Cameron, se referiu aos imigrantes como uma "praga". Em tempo: metade dos refugiados de diversas origens espalhado pelo mundo são crianças. Não existem registros de que em algum momento o político inglês tenha se referido de tal maneira aos milionários de origens diversas que se estabelecem no Reino Unido. Inclusive comprando clubes de futebol e ganhando status de personalidades, caso do ex-primeiro ministro da Tailândia Thaksin Shinawatra, que ainda vive na Inglaterra, onde em 2006 adquiriu o Manchester City.
A Human Rights Watch, uma associação defensora dos direitos humanos, o identificava já naquela época como "violador dos direitos humanos da pior classe", acusado por 2,5 mil execuções sem julgamento prévio. Além disso, teria eliminado órgãos de imprensa opositores ao seu governo e ordenado forças militares a utilizar todos os meios para deter seus advesários. Em solo britânico, o tailandês vive tranquilamente, saboreando, inclusive, o lucro da venda do Manchester City ao sheik Sulaiman Al-Fahim em 2008. Um show de hipocrisia de Cameron, tolerante com personagens como Shinawatra e que demonstra repulsa diante de gente desesperada pela sobrevivência.
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Crianças batem bola em campo de refugiados sírios
Crianças batem bola em campo de refugiados sírios
A angústia dos sírios é o que podemos chamar de situação extrema. Aquelas pessoas precisam chegar a algum ponto do planeta onde seja possível não apenas sobreviver, mas sim viver. Trabalhar, ter casa, comida, roupas. E num estágio seguinte, a dignidade, o direito a momentos de lazer, não apenas superar os obstáculos dia após dia escapando da morte. Oferecer perspectivas mínimas às suas crianças e aos jovens que sonham construir algo adiante. Como os muitos haitianos que chegaram ao Brasil e vêm conseguindo o mínimo necessário para que tenham a sensação de que estão realmente vivos. De que são mesmo cidadãos. Apesar de nem todos os receberem bem por aqui.
O drama dos sírios e a oportunidade recebida pelos que vieram do Haiti refletem um pouco do que se passa em nosso futebol. O glamour dos grandes times e seus jogadores bem remunerados que treinam em CTs de Primeiro Mundo engloba minoria insignificante dentro de um universo que inclui atletas e comissões técnicas, roupeiros, massagistas etc. E a cada ano milhares passam mais da metade do ano sem emprego. Embora tenham suas carteiras de trabalho assinadas como jogadores profissionais, são obrigados a deixar a bola para ganhar o pão nas mais diversas profissões. Viram (ou voltam a ser) porteiros, seguranças, vendedores, lixeiros...
Estudos do Bom Senso Futebol Clube estimam em mais de 12 mil os desempregados a partir do encerramento dos Estaduais. Isso porque as federações e a CBF, que acaba de divulgar o calendário de 2016; não mantêm agendas que movimentem os clubes espalhados por todo o Brasil em competições que se estendam por todo o ano. Sem vaga em divisões nacionais, a maioria dos times interrompe atividades ainda no primeiro semestre, jogando milhares no mercado de trabalho. E enfraquecendo o futebol em incontáveis cidades brasileiras, que sem representantes enfrentando vizinhos, empurram o torcedor para diante da TV, vendo e consumindo os grandes.
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Thaksin Shinawatra, acusado por violar direitos humanos virou pop star no futebol inglês
Thaksin Shinawatra, acusado por violar direitos humanos virou pop star no futebol inglês
E esses jogadores saem por aí, como refugidados procurando alguém que lhes dê trabalho, para que tenham alguma renda e sobrevivam até a próxima temporada, na esperança de conseguirem um clube. E com uma boa dose de sorte, um contrato com alguma equipe que jogue até o final do ano. Outros se oferecem a empresários independentemente de perfil e idoneidade, no afã de conseguirem espaço, seja aonde for. Há mais de uma década entrevistei um brasileiro que jogou no Usbequistão. Foi muito antes de a ex-república soviética se transformar em mercado alternativo para profissionais como Zico, Luiz Felipe Scolari e Rivaldo, que por lá passaram.
O rapaz chegou ao clube usbeque e passou meses sem salário. Os dirigentes adiantaram sua remuneração ao empresário, que desapareceu. Sem dinheiro, jogou e contou com a solidariedade de companheiros e torcedores, além da própria agremiação, que não tinha mais recursos para pagar o que combinara. Na realidade já havia pago. Ingênuo e desesperado, o brasileiro havia dado uma procuração ao agente estrangeiro, na verdade um salafrário internacional que lhe passara a perna. A experiência foi dura, mas lhe deu novas esperanças. Com uma passagem no exterior em seu currículo, voltou ao Brasil alimentando sonhos, como um empresário sério.
Mas os meses se acumumularam e o empresário sonhado nunca apareceu. Um dia ele me telefonou. Perguntou se, pelo conhecimento como jornalista atuando há anos na área esportiva, poderia ajudá-lo a se encaixar em algum time. Me ofereceu o que fosse preciso, percentual do salário, os primeiros pagamentos, qualquer coisa. Respondi que não saberia sequer como fazer para socorrê-lo, a mais pura verdade, e que eticamente não poderia me envolver numa relação profissional do gênero. Foi péssimo não poder ajudá-lo. Nunca mais ouvir falar dele e é provável que tenha se refugiado em algum trabalho distante da bola, buscando sobreviver, como haitianos e sírios em fuga.
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Clique abaixo e ouça o desabafo do jogador Ruy Cabeção quando da eliminação do seu time em 2014, o Mixto de Cuiabá, da Copa do Brasil, que representou o desemprego de vários companheiros do experienrte jogador.
 

 
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Ruy fala sobre a situação de jogadores que ficam sem trabalho no começo de cada ano
Histórias assim se repetem com frequência. Em silêncio, anônimas, longe dos holofotes. Enquanto isso, entidades que faturam com o futebol não fomentam o esporte, não apoiam os pequenos clubes e seus jogadores, ignoram a existência de tantos atletas que se refugiam por aí, muitas vezes longe da bola. Há países europeus cujos habitantes fugidos do horror encontraram novos rumos no passado, mas hoje não parecem dispostos a dar a mão com a generosidade que ancestrais encontraram um dia. Os refugiados do futebol brasileiro também ficam ao relento. Poucos tentam ajudá-los. A postura dos olhos fechados pela conveniência impera.
Vendo o noticiário e o drama dos sírios lá fora, ou a esperança renovada de haitianos empregados no Brasil, fico me perguntando sobre o que leva alguns a tamanha revolta, mesmo andando por aí em seus carrões, comendo boa comida, se vestindo bem e dormindo em confortáveis camas. É como se essa gente vivesse em outro planeta, ignorando o que acontece ao redor. Da mesma forma, fico sem entender atletas de times grandes, famosos e bem pagos demonstrando desânimo e desmotivação como se isso fizesse algum sentido. Esses pseudo-craques deveriam saber o quão valioso pode ser um contrato, mesmo que seja com um desconhecido clube do distante Usbequistão.