sábado, 19 de setembro de 2015

Saber torcer

"Manifestar predileção pela vitória de (uma equipe desportiva, uma agremiação etc.). Desejar a vitória de um grupo desportivo, gesticulando, gritando etc." Os dicionários definem assim o significado de torcer. Já torcedor é "aquele que torce ('ansia por [algo]') em competições esportivas".
Mas como se torce? Quem é o "verdadeiro" torcedor? Como age o autêntico torcedor do estádio? A discussão voltou nesta semana por dois motivos: a frieza de rubro-negros em Brasília, onde o Flamengo perdeu para o Coritiba ante 67 mil pessoas, e o desabafo do técnico colombiano do São Paulo.
O brasileiro, em maioria, torce por vitórias. Tirando as torcidas organizadas e alguns outros, quem vai ao estádio contempla o cotejo. Uma minoria canta, pula, salta, se esgoela pelo seu time, tenta de alguma forma participar do jogo, mudar os rumos da peleja literalmente no grito. É cultural e não existe exceção.
Tire as organizadas do estádio e quem puxará o cântico? E quando ele aumenta, cresce, se espalha, por quanto tempo os demais acompanham as torcidas e os apaixonados dispostos a deixar as cordas vocais na cancha? Não são tantos. O brasileiro no estádio costuma ser um espectador na maior parte do tempo.
Enquanto o Flamengo penava diante do Coritiba, parte dos quase 70 mil pagantes presentes vaiava. César, o zagueiro, foi escolhido para Judas da noite brasiliense. Mas e se fosse no Rio de Janeiro, seria diferente? Que nada. Basta lembrar a derrota para o Atlético, com falha de outro César, o goleiro, e gol contra de Samir.
Naquele sábado parte da platéia do Maracanã elegeu o vilão da tarde: Pará. Embora o esforçado lateral não tenha cometido nenhuma falha grave, tampouco foi responsável pelos gols do Galo. Mas as vaias o perseguiram a ponto de ser substituído por falta de condições para seguir no gramado com tantos contra ele.
A diferença do público rubro-negro do Rio de Janeiro para o de outros Estados está nas torcidas organizadas e mais alguns poucos abnegados. Sem elas, vira uma grande platéia teatral. E não é diferente nas casas dos demais grandes clubes brasileiros. Rigorosamente todos têm torcidas formadas assim.
GETTY
Torcida do PSV Eindhoven protesta contra o Wi-Fi no estádio em jogo de 2014
Torcida do PSV Eindhoven protesta contra o Wi-Fi no estádio em jogo de 2014
Não por acaso torcedores do PSV Eindhoven já protestaram contra a disponibilização de internet sem fio no estádio do clube holandês. É que parte da torcida esquece o jogo e se dedica às selfies e postagens em redes sociais. Para os mais atuantes, o comportamento distante da partida é uma ofensa. Pedem a todos que torçam mesmo.
No Brasil, a Mancha (Alvi) Verde adotou o lema "Somos Torcida". Isso mesmo, torcida que torce, incentiva, dá apoio ao time. E para notar a falta que esse incentivo faz, prometeu silêncio contra o Grêmio, protesto contra a decisão do Palmeiras de colocar as organizadas no tobogã do Pacaembu. Mas voltou atrás e vai gritar pelo time.
REPRODUÇÃO
Menos selfies, mais apoio
Menos selfies, mais apoio
No começo do Brasileiro a Mancha silenciou no cotejo diante do Atlético, no Allianz Parque, protesto contra os elevados preços dos ingressos. Irritados, palmeirenses que estavam em outros setores do estádio a xingaram. A pergunta é: por que não usaram todo aquele gogó para gritar pelo Palmeiras? É, sem as organizadas fica mesmo difícil. 
O companheiro Leandro Iamin, da Central 3 — cliqueaqui e conheça — inspirado no lema adotado pela Mancha encaixou um celular "proibido" na imagem (ao lado) que lembra a manifestação dos holandeses em Eindhoven contra tantos smartphones.
O técnico Juan Carlos Osorio já se espantara com o pequeno público do jogo de seu São Paulo contra o Santos na Vila Belmiro. Tão poucos. E num clássico! Depois do empate sem gols com a Chapecoense comparou a ação de torcedores europeus com sul-americanos, que não seriam na sua visão, tão dispostos a incentivar.
Concordo em parte. Especialmente quando o colombiano fala do "verdadeiro torcedor", que torce mesmo. Mas não vejo os sul-americanos como iguais no comportamento. Argentinos, uruguaios e chilenos apóiam, cantam, vibram, se entregam mais. E não são só as barras, como se chamam as organizadas nesses países.
 
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Osorio alfineta: 'O verdadeiro torcedor aplaude e torce por sua equipe do começo ao fim'
Enquanto torcedores do Flamengo não sabiam como ajudar o time em Brasília, e então alguns atrapalhavam com inadequadas e pouco inteligente vaias, Racing e San Lorenzo se enfrentavam em La Plata pela Copa Argentina. Duas hinchadas valentes e que vão à cancha "jogar", com cânticos e muito coração.
Transmitimos o jogo pela ESPN Brasil. E quando o Ciclón vencia por 1 a 0, os hinchas deLa Academia empurravam o time blanquiceleste para a reação. Que veio. Na luta do time, nas substituições do treinador e no erro (a meu ver) do árbitro ao marcar um pênalti no finalzinho. Mas quando o Racing perdia, ninguém vaiou.
Foi um grande duelo de duas hinchadas com muita garra e história. A torcida do San Lorenzo é capaz de coisas inimagináveis nessas bandas de cá — clique aqui e confira. E a do Racing... Bem, é aquela que impediu o fechamento do clube, que nunca abandonou, mesmo com apenas dois títulos argentinos em 48 anos!
 
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Racing vence San Lorenzo de virada e vai às semis da Copa Argentina
Quando me perguntam de onde vem a preferência pelo clube de história mais emocionante e cruel da Argentina, a resposta é: o Racing cativa por sua gente. É o modo portenho de torcer elevado a outra potência. O lema é deixar o coração na cancha. Na minha concepção isso é futebol. Pena que muitos jamais entenderão.
Cada um se comporta nos estádios como quer. E cada um pensa o que bem entender sobre tal comportamento. Nos vídeos abaixo, um trecho da partida que terminou 2 a 1 para o Racing. Você observará no placar, o San Lorenzo ainda vencia por 1 a 0. Ao fundo "Muchachos, Traigan Vino Juega La Acade" — clique aqui e conheça a música. Demais!
E vem a resposta dos hinchas do Ciclón. Um duelo de torcidas que não se contentam com o que seus jogadores fazem em campo. Elas têm uma tarefa, uma missão. E vão aos jogos dispostas a cumprí-la. Alma do futebol, aula de arquibancada. Mas só para quem quiser aprender. Desculpem, mas isso sim é saber torcer.