sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Especial - Por que Neuer não é, nem pode ser líbero - treinador e zagueiro ajudam a explicar

GETTY
Neuer recebe o prêmio de melhor goleiro do ano das mãos de Del Piero
Neuer recebe o prêmio de melhor goleiro do ano das mãos de Del Piero
O título mundial da Alemanha, as grandes atuações no Bayern de Munique e a presença entre os finalistas, junto com Cristiano Ronaldo e Messi, da Bola de Ouro FIFA tornaram Manuel Neuer uma figura midiática. Surpreendente para um goleiro.
Não para o melhor do mundo e que lidera uma tendência, ou necessidade no futebol atual: saber jogar com os pés. Na seleção e no clube, os treinadores Joachim Low e Pep Guardiola compactam os setores, adiantam a última linha de defesa e Neuer ganha papel importante.
Nada inovador. Goleiros como Higuita, Jorge Campos, Chillavert e Rogério Ceni já saíam jogando com os pés há décadas. Jongbloed, no "Carrossel" holandês de 1974, antecipara o comportamento. Neuer, porém, é uma evolução do conceito.
Se a obsessão dos técnicos no futebol de altíssimo nível é ter superioridade numérica em todas as fases do jogo, contar com um goleiro com recursos técnicos e físicos para sair jogando e fazer a cobertura é uma ótima vantagem.
Ainda mais se ele alia estatura e velocidade. Neuer tem 1,93 m e na Copa do Mundo no Brasil percorreu média superior a cinco quilômetros por jogo. Chegou a atingir mais de 30 km/h de velocidade máxima em um "sprint" ao sair na cobertura da defesa. O melhor goleiro da Copa com 25 intervenções importantes e apenas quatro GOLSsofridos.
"Ele foi o responsável pela nossa vitória. Marcou uma nova era para os goleiros ao fazer coisas que nunca tínhamos visto". Palavras de Joachim Low, treinador campeão mundial e eleito o melhor do ano em 2014.
ESPN TRUMEDIA
Mapa de toques de Neuer na Copa do Mundo: com zaga adiantada, o goleiro saiu mais da área que o habitual.
Mapa de toques de Neuer na Copa do Mundo: com zaga adiantada, o goleiro saiu mais da área que o habitual.
Completo, sim. Mas não um líbero na defesa. Para entender o significado da função, é preciso buscar a sua origem.
O primeiro time que se tem notícia de usar um jogador atrás da linha defensiva foi a Suíça do austríaco Karl Rappan na Copa de 1938, que eliminou a Alemanha de Hitler com seu "ferrolho", espécie de 5-4-1. A estratégia, junto aos aspectos táticos do "Metodo" de Vittorio Pozzo nos títulos mundiais italianos de 1934 e 1938, formou a base do "Catenaccio" que Nereo Rocco implantou na Triestina, depois Milan nos anos 1940, e Helenio Herrera consagrou na Internazionale bicampeã europeia nos anos 1960.
O raciocínio era simples: em tempos de marcação individual e WM (3-2-2-3), três defensores cuidavam do trio de ataque. Pela direita, o "terzino destro" cuidava do ponta-esquerda, no centro o "stopper" marcava o centroavante e o "terzino sinistro" pegava o ponta-direita. Ou seja, uma vitória pessoal do atacante e só sobrava o goleiro.
O "libero" jogava na sobra da retaguarda. Mas com uma função primordial: aproveitar essa liberdade na construção do jogo. Se cada um pegasse o seu, quem marcaria esse jogador de trás? Era a chance de quebrar o sistema defensivo do adversário.
Apesar da origem italiana e a excelência de nomes como Giovani Trapattoni, Ivano Blason, Armando Picchi, Gaetano Scirea e Franco Baresi, ninguém exerceu melhor a função que um alemão: Franz Beckenbauer. Saiu do meio para estar em todo o campo, na seleção e no Bayern de Munique. Mas inspirado em um outro jogador da Azzurra: Giacinto Facchetti, lateral esquerdo da Internazionale e vice-campeão mundial em 1970.
"Ele marcava bem e atacava ainda melhor quando se projetava à frente, pela lateral. Pensei, então, que atuando atrás dos zagueiros, saindo para o jogo, eu teria a vantagem de atacar pelos dois lados", lembra o Kaiser (trecho do livro "As Melhores Seleções Estrangeiras de Todos os Tempos", de Mauro Beting).
ANDRÉ ROCHA
Beckenbauer jogava na sobra da zaga da Alemanha campeã mundial de 1974, mas saía para armar o jogo por todo o campo.
Beckenbauer jogava na sobra da zaga da Alemanha campeã mundial de 1974, mas saía para armar o jogo por todo o campo.
Portanto, na acepção da palavra, Neuer não é e nem pode ser um líbero. No máximo, um zagueiro de sobra.
Funções que se confundem no Brasil, especialmente depois da criação do sistema com três zagueiros nos anos 1980. Brown na Argentina de Bilardo jogava atrás de Cuciuffo e Ruggeri, só aparecia no ataque em bolas paradas - como no GOL da final da Copa de 1986 sobre a Alemanha. Já Morten Olsen na Dinamarca de Sepp Piontek, era o primeiro articulador, iniciando a saída de bola e aparecendo na frente.
REPRODUÇÃO EUROSPORTS
A saída de bola com três zagueiros comandada pelo líbero Morten Olsen em 1986 da pioneira Dinamarca de Sepp Piontek.
A saída de bola com três zagueiros comandada pelo líbero Morten Olsen em 1986 da pioneira Dinamarca de Sepp Piontek.
Na seleção brasileira da Copa de 1990, com Sebastião Lazaroni, Mauro Galvão era chamado de líbero e, no ano anterior, chegou a ser comparado a Baresi pelas ótimas atuações com a camisa canarinho. Mas atuava na sobra.
"Era uma função diferente. Eu e os outros dois zagueiros tínhamos que cobrir os laterais, então eu não saía muito, ficava mais fixo", explica o ex-defensor e agora técnico.
Valdir Espinosa, treinador de Galvão no Botafogo, lembra que no time campeão carioca de 1989, depois de 21 anos de jejum, o zagueiro cumpria mais a função de líbero: "No Botafogo ele armava o time de trás e tinha a cobertura do volante Carlos Alberto Santos. Eu repeti naquela equipe o que fiz no Grêmio campeão da Libertadores e Mundial em 1983: Hugo De Leon subia e o volante China ficava. Isso, sim, é ser líbero".
ANDRÉ ROCHA
No Botafogo campeão estadual comandado por Valdir Espinosa, Mauro Galvão era o líbero que armava o jogo e Carlos Alberto Santos fazia a cobertura.
No Botafogo campeão estadual comandado por Valdir Espinosa, Mauro Galvão era o líbero que armava o jogo e Carlos Alberto Santos fazia a cobertura.
Outros brasileiros atuaram desta forma, como Marinho Peres, no Barcelona de Rinus Michels e no Internacional de Rubens Minelli nos anos 1970, e Luis Pereira no Palmeiras no mesmo período e no início dos anos 1980. Todos inspirados em Beckenbauer. Marcando e armando o jogo.
Ainda que Guardiola seja um técnico ousado e com a loucura dos gênios, é difícil imaginar Neuer abandonando a própria meta e ultrapassando os zagueiros para criar no meio-campo. Por enquanto, a função deve ficar restrita à saída de bola e à cobertura.
Mauro Galvão elogia o goleiro e aponta uma vantagem tática: "Enquanto a maioria dos times precisa recuar um volante para iniciar a saída de três, com o Neuer não é necessário, ele faz com os zagueiros".
Espinosa, porém, aponta um perigo na influência da postura do goleiro alemão. "Discordo dessas imitações do Neuer que começam a surgir no Brasil. Não é todo goleiro que tem qualidade com os pés, nem velocidade, envergadura e inteligência para fazer essa sobra. Para a maioria, o melhor é guardar a meta e, quando sair, tocar de lado e não inventar", ressalta.
Neuer não é líbero, mas vem sobrando entre os goleiros do planeta. Para os alemães é mais que suficiente.