sexta-feira, 17 de junho de 2011

Romário, o Che e um Zé Ninguém

Romário é um dos santos de devoção do meu altar do futebol. Como jogador foi um gênio, uma luz que passou pelos campos. Como homem foi o que por aqui, nas rodas da malandragem, se chama de “sujeito-homem”. Controverso para muitos, marrento, mas um cara franco e de palavra. O que dizia estava dito e pronto. Convivi muito com Romário ao fazer o documentário “Uma História Brasileira”, sobre a vida dele (está no you tube por uma dessas coisas dos tempos modernos: alguém botou, agradeço!). Dessa convivência diária por algum tempo, posso dizer isso: “sujeito-homem”. Um terceiro Romário está em gestação. É o Romário deputado, que surpreendeu a todos sendo um deputado presente, contrariando todas as expectativas, e ao pedir a convocação de Ricardo Teixeira para esclarecimentos na câmara. E “quebrou”, para ficar na linguagem do próprio ao dizer sim para a MP que diz amém ao sigilo em licitações para Copa do Mundo. Cedo ainda para sabermos e batermos o martelo nesse terceiro Romário que nasce. Pelos dois anteriores, tenho esperança, mas da mesma forma que a tal esperança se foi com tantos em quem acreditei e votei para estarem em Brasília, as barbas ficam sempre de molho. O tempo dirá.

Mas a lembrança do Baixinho agora nem veio por isso. Lembrei do malandro do Jacarezinho e da Vila da Penha por uma faceta que me fazia morrer de rir. (Aliás, ser extremamente engraçado é mais uma das facetas de Romário). Se alguém quisesse provocar o Baixinho e ouvir algo engraçado, era só chegar perto e perguntar se ele tinha escutado a declaração que alguém, 99% das vezes menos importante do que ele, tinha dado sobre o Peixe. Invariavelmente a resposta era resolvida em quatro letras: “Quem”?, respondia perguntando sobre o autor da afirmação, encerrando o assunto e de vez em quando, quando estava com boa vontade, seguia e perguntava: “quem é esse cara? Não conheço como nada”! e partia.

Quantas vezes vi tal cena! Criado na malandragem, onde e quando o nome fresco do tal de "bullying" era "zoação" mesmo, e malandro não podia entrar na pilha nem voltar pra casa “gasto” pela bandidagem, Romário levou para a vida adulta suas soluções elaboradas na infância da favela e da rua. Sempre seguiu sendo do morro, dizia e diz isso com orgulho, sem jamais renegar. Pelo contrário. Pergunte para Romário se ele é de “comunidade” e vai ouvir que não, “sou favelado mesmo”. Forjado na lâmina das ruas, onde é preciso voltar de cara limpa no dia seguinte, com a honra intacta, nunca deu luz para cego, nunca deu moral e respondeu para quem não tinha estatura para estar na mesma roda que ele. O pele, o bucha, o vacilão, aquele que não é ninguém e tenta entrar na roda, muitas vezes buscando impressionar, tentando gastar o xerife para ver se impressiona. Com essa escola de vida, levou para o futebol as lições da rua e nunca gostou de dar luz pra cego. Túlio tentou algumas vezes pegar carona na cauda do cometa e ouviu o tal “quem”? algumas vezes. Até o dia que o Baixinho não resistiu, e morador do mesmo prédio do então alvinegro que insistia em provocar o Romário, saiu com essa: “manda ele me esquecer e cuidar da mulher dele. Parece que tá dando ladrão na casa dele”, encerrou.

 Certa vez, um jogador de vôlei, a pedido de uma tv, deu o conselho para o Baixo de que “atleta tinha que se cuidar, não fazer noitada, etc”. Resposta, interrompendo a pergunta e encerrando o assunto: “Quem”? Foram alguns os Zé Ninguéns tentando pegar carona na luz do malandro, que sempre encerrava o assunto sem dar essa luz e sem passar recibo.

Foi pensando no Baixinho que matuto desde a última terça se deveria escrever mesmo esse texto. Comecei meu dia diante de um Zé Ninguém desses. Poucas vezes vi tantas pobreza intelectual, tanta distorção e tanta necessidade de garoto bobo, desses vítimas de bullying, de tentar entrar na roda atirando pedra no xerife. Pensando e fiel a máxima do Baixinho de não dar luz para cego, conclui que o artigo da página 7, de opinião, intitulado “O Mito Che Guevara”, assinado por um tal Rodrigo Constantino, não deveria ser comentado. Afinal, indo ao google, esse admirável mundo novo que nos permite saber até quem são os Zé Ninguéns, constatei que era mesmo apenas um Zé Ninguém e que, portanto, como o Baixinho ensina, não merece resposta. Mas a questão era O Globo. Um jornal, uma instituição como O Globo, onde passei bons momentos da vida e da carreira, abre um espaço para um Zé Ninguém... Vale um minutinho de luz. Não por ele, mas pela instituição quase secular.

É preciso deixar bem claro aqui para os eventuais apressados comentários que virão. Aqui não está em questão a ideologia de cada um, o Che, Cuba ou o que valha. Apenas algumas das coisas distorcidas escritas pelo tal sujeito, o famoso quem, que se assina como economista. Portanto, nos poupemos das mensagens que irão por esse caminho.

O tal sujeito é digno representante de uma tribo de Zé Ninguéns que se multiplica, e em tempos digitais aumenta e cresce. Os tais que querem entrar na roda gastando o xerife. Para isso, para afastarem a dolorosa condição de Zé Ninguém, são veementes, atiram contra tudo e todos, pegam pesado, escolhem alvos reconhecidos para tentar um pouco de luz. Lá pelas tantas, o sujeito atira contra Walter Salles Jr, cineasta de talento reconhecido no mundo todo, autor de “Diários de Motocicleta”, e dispara: “Se ao menos os cineastas engajados tivesse lido o diário completo!”, sem citar Walter Salles. Quanta pretensão.
Bom, mas o despautério do Globo em dar espaço a um Zé Ninguém desses vai além. Como economista, o sujeito se revela indigente intelectualmente, ao escrever que “...Che foi um grande colaborador da revolução cubana, que instaurou a mais longa ditadura do continente, espalhando um rastro de morte, miséria e escravidão na ilha caribenha”.

Bom, já que vou cometendo o erro de dar luz a um Zé Ninguém, é preciso pelo menos estabelecer algumas fatos e números que estão acima de qualquer ideologia, ainda que saibamos, fatos e números estão aí para serem torcidos por ideologias, ibopes, etc. Pois se é demais imaginar que, se um rapaz desses não tem cinco minutos de esquina e jamais viu a realidade das coisas, o economista ao menos deveria ler, conhecer alguns fatos. Como pode alguém falar em escravidão na Cuba atual, vivendo no Brasil? Pois jamais se noticiou, nem o agente mais fanático da CIA, o caso de um escravo sequer na Cuba atual. Podemos falar de tudo, carências, pobreza, ineficiências, mas escravidão...

Ou muito me engano ou é aqui no Brasil que temos dezenas de freqüentes denúncias de escravidão no campo. A cada dia fazendas repletas de gente laborando em regime análogo à escravidão, no norte e nordeste nem se fala. Mas se não lê, falha grave para um economista, poderia fazer o que já fiz, andar por aí, como fiz no documentário “Escravos do Século XXI”: é de cair o queixo e de horrorizar. Em plena São Paulo e não num rincão remoto, centenas, milhares de homens e mulheres mantidos como escravos em confecções clandestinas. Imigrantes bolivianos vivendo como bichos, escravos mesmo. Assim como em Buenos Aires. Como um sujeito que distorce assim ou desconhece o básico pode virar colunista de um grande jornal assim? Que tempos...

O despautério prossegue. O sujeito fala que “Cuba tinha uma das maiores rendas per capta da região em 1958, e teve sua economia destroçada pelas medidas coletivistas do ministro Che”. Será que o nobre economista desconhece que a renda per capta, como medida, em nada mede a saúde de uma nação, já que a diferença brutal entre os mais ricos e os miseráveis pode estar embutida ali num abismo colossal e mascarada numa alta renda per capta onde ricos são muito ricos e pobres muito pobres? Como era a Cuba a que o “economista” se refere.

Existe um trecho bom em todo texto. Muito bom. Tão bom que deve ter sido escrito num momento diante do espelho: “A cegueira ideológica alimentada pela hipocrisia prejudica uma análise mais isenta dos fatos”. Verdade. Mas logo volta para a agressividade juvenil de menino vítima de zoação (ou bullying, como queiram. Prefiro em português, sempre), típica de quem quer luz desesperadamente. Agride quem pensa diferente, dizendo que “...isso basta para ser reverenciado por idiotas úteis da esquerda”. Nossa, que violento!!!!

Poderia ir além, trecho por trecho. Mas seria, além da luz que já está sendo dada, entrar no subjetivo. Pede-se ao menos que a parte onde falamos de coisas concretas e objetivas, como escravidão, miséria, seja acompanhada de um mínimo de embasamento. Como já disse, não porque importa um Zé Ninguém querendo entrar na roda disparar para tudo que é lado. Mas saiu numa página onde Veríssimo escreve, Zuenir e tantos outros.

Não voltarei ao assunto, réplicas, tréplicas, seja para onde o assunto caminhar, seja qual for o desdobramento. Como diz o filósofo da Vila da Penha, “já foi muita luz pra cego”.