quarta-feira, 1 de junho de 2011

Máfia, as eleições da Fifa e a premonição de Noel

Acho que já disse isso por aqui em algum momento: adoro os filmes de western. Com devoção pelos clássicos do gênero, herança familiar. Mas mesmo os westerns de segunda linha ou os italianos de terceira podem roubar meu tempo. O bem e o mal, o medo e a coragem, as situações limites do homem, a dignidade e a falta de escrúpulos, o amor e o ódio, está tudo ali, naquela metáfora que conta um pouco da colonização do oeste americano.

Talvez impressionado pela adoração por westerns, me sentia em missão inglória e tensa, numa noite fechada, sentado em um pub na América profunda, em um vilarejo remoto do Texas. O olhar fixo na porta esperando pelo interlocutor que não chegava, um trago para espantar a tensão, e o tempo andando. De repente, Michael Franzese entra no pub, a esta altura algo muito próximo de um saloon em meus pensamentos. Ele mesmo, o “Príncipe de Long Island”, o sucessor de Joe Colombo na Cosa Nostra, o Al Capone revivido, andando em minha direção.

Um breve aperto de mãos, os cumprimentos de praxe e a negativa do sujeito para o lugar oferecido na mesa, de costas para a entrada do bar. “Alguém como eu não pode sentar jamais de costas para a porta e nem exagerar na bebida para não perder a lucidez”, encerrou, causando uma mudança na disposição da mesa. O diálogo me obrigou, dali em diante, a ficar de olho permanente na entrada e certamente deixou algum suor frio na mão...

Apesar da impossibilidade do interlocutor em tomar algumas doses, o papo correu bem. No dia seguinte gravaríamos uma entrevista, mas estar diante de tal personagem ainda sem gravar, aquela velha ansiedade em ter logo o material na mão era teste de hipertensão. Conhecia um pouco da história de Franzese, mas ali, frente a frente com alguém que foi o número um da Cosa Nostra, ouvindo seus relatos, era algo que disparava o coração diante da certeza de uma história única.

Os relatos seguiam. Os anos de cadeia, os dois anos na solitária, o acordo com o FBI, e acima de tudo, o que mais me interessava, seu bilionário esquema de manipulação de resultados no esporte para beneficiar apostas viciadas. Milhões arrecadados por semana, desde os anos 80, em resultados fraudulentos nos campos, quadras e ringues. Como era o contato com os atletas, como funcionavam as apostas, como era a fraude, quem eram os atletas envolvidos, o que poderia falar em off e em on, o esquema da banca fora dos Estados Unidos, a rede de internet em países como a Costa Rica e outros...

Guardo suas palavras: “17 jogadores de basquete e 102 de futebol americano disseram que tinham sido pagos pra jogar mal, conheciam um colega que fez isso, forneceram informação interna sobre um jogo ou foram feridos por causa de uma dívida. 102 jogadores de futebol americano admitiram ter feito algo ou poder ter feito algo pra mudar o resultado do jogo devido a sua situação na jogatina. 17 jogadores de basquete. Golfe? Se aposta muito no golfe...”

Pergunto a ele sobre o nosso futebol. Sua resposta é curta e objetiva, com outra pergunta: “Existe dinheiro envolvido no futebol? Então existe fraude”, disse. Me conta como um atleta se torna refém do esquema, as chantagens feitas depois que o sujeito se envolve. E me faz outra pergunta: “Você quer mesmo se aprofundar no assunto? Visite a Costa Rica quando sair daqui. Verá a máquina por trás da ilegalidade funcionando, o esquema de internet onde as apostas se concentram”.

Lá se vão uns 5, 6 anos. Ia começar um programa de reportagens especiais, valia o esforço para a estreia ser especial. Chefia convencida, despeço do “Príncipe de Long Island” feliz, pelo menos até descobrir que ele estava no mesmo voo para deixar o Texas...Livre dele, um voo sereno entre Houston e San Jose para dias nem tão serenos assim na Costa Rica.

Seguindo as dicas de Franzese, chegamos aos Sportbooks, para onde o apostador de qualquer lugar do mundo se conecta ao apostar e deixar seus dados bancários. Diante daquilo, lamentei que alguém se arrisque tanto ao apostar...Dois dias em San José seguindo essas pistas, e Lord Becker, cinegrafista dos bons, é interpelado numa saída do hotel para um simples café. O policial (polícia e crime com relações íntimas não é privilégio nosso) quer saber por que nos dois últimos dias estivemos gravando em casas de apostas clandestinas, os tais sportbooks. A conclusão foi óbvia: sabiam dos nossos passos. A hora de partir ia se aproximando por necessidade...Na minha cabeça, ecoavam os versos de Milton dando conta de uma ingênua Costa Rica...

Antes de partir converso com Eduardo Agami, o representante dos sportbooks.
"O futebol americano é o maior negócio. Temos apostas também em futebol internacional. Basquete e basquete universitário. Beisebol, hóquei, e futebol internacional. Mais o futebol europeu, mas Libertadores também, Copa América e campeonatos nacionais temos atividade, mais que em alguns anos atrás".

O impacto do “negócio” não é pequeno na Costa Rica. Cem milhões de dólares anuais na economia. Oito mil empregos gerados. Duzentas novas companhias de casas de apostas. Para tudo isso passar, é possível imaginar como executivo, legislativo e judiciário se envolveram. Doações para campanhas políticas. Em pouco tempo, denúncias de lavagem de dinheiro e da presença da máfia no antigo paraíso pipocaram.

Aqueles dias no Texas e em San José seguem vivos na cabeça, e deixaram uma permanente pulga atrás da minha orelha em relação ao futuro do esporte no mundo. Pulga maior surge agora, com mais uma vez a notícia de Joseph Blatter preocupado com a armação de resultados por apostas no futebol. Porque já vimos esse filme várias vezes: toda vez em que a Fifa está no meio de alguma tormenta, no mar de lama dos escândalos que vire e mexe assolam a entidade, sempre surge o assunto do combate nas armações de apostas ilegais. Como um factoide providencial, mudando um pouco o rumo da prosa. Em tempo de eleições, um factoide bem aplicado vale o mundo! Ou a Fifa!

Mais assustador ainda do que o factoide é saber que a entidade que deveria cada vez mais ser investigada, doou vinte milhões de euros para a Interpol para implementação de escritórios que investiguem o negócio sujo. Simples assim: quem deveria ser investigado está financiando investigações. Por tudo isso, depois de viajar aqui entre Texas e San José, termino em Vila Isabel, fazendo a pergunta de um gênio da raça: Onde está a honestidade?


ONDE ESTÁ A HONESTIDADE

Noel Rosa

Você tem palacete reluzente
Tem jóias e criados à vontade
Sem ter nenhuma herança ou parente
Só anda de automóvel na cidade...

E o povo já pergunta com maldade:
Onde está a honestidade?
Onde está a honestidade?

O seu dinheiro nasce de repente
E embora não se saiba se é verdade
Você acha nas ruas diariamente
Anéis, dinheiro e felicidade...
...
Vassoura dos salões da sociedade
Que varre o que encontrar em sua frente
Promove festivais de caridade
Em nome de qualquer defunto ausente...