sábado, 20 de outubro de 2012

Especial - De Sindelar a Messi - e não Neymar: dissecando o 'falso nove

Com a seleção atuando sem um centroavante de ofício, o conceito do “falso nove” ficou ainda mais próximo da realidade do futebol brasileiro. Com ele, também algumas distorções do entendimento da função no trabalho ofensivo de uma equipe.

Antes, é dever esclarecer: pelo menos neste espaço, o uso do termo “falso nove” tem como único objetivo simplificar e, obviamente, poupar palavras no texto jornalístico. E a intenção do post não é ensinar, em tom professoral e como última palavra, como funciona a movimentação. Apenas aprofundar a análise e acrescentar informações para facilitar o entendimento.

Dito isto, vamos direto ao ponto nevrálgico da questão: afinal de contas, como joga o “falso nove”? Na prática, é o jogador mais avançado do time sem a bola, mas, na transição ofensiva, sai do meio dos zagueiros e se movimenta entre as linhas de defesa e meio-campo do adversário. Com isso, abre espaços para que algum companheiro, ou ele mesmo, apareça de trás para concluir, indefinindo a marcação.

O exemplo mais didático e moderno seria a movimentação de Lionel Messi nos 5 a 0 do Barcelona sobre o Real Madrid em 2010. O argentino não fez gol, mas desmontou o sistema defensivo armado por José Mourinho atraindo a marcação com recuo estratégico e facilitando a infiltração em diagonal dos ponteiros Pedro e Villa ou dos meias Xavi e Iniesta pelo centro.



A dinâmica não é inédita. Longe disso. O primeiro “falso nove” que se tem notícia foi Matthias Sindelar, craque do “Wunderteam” austríaco dos longínquos anos 1930, segundo relato de Jonathan Wilson no livro "Inverting the Pyramid". Mesmo no 2-3-5 da época, o genial atacante se mexia por todo campo desarticulando totalmente a marcação individual sem sobra daqueles tempos de nazismo que impediram uma trajetória mais gloriosa de um país dominado pela Alemanha de Adolf Hitler.

Olho Tático
Sindelar era o craque móvel do Wunderteam austríaco (numeração fictícia)
Sindelar era o craque móvel do Wunderteam austríaco (numeração fictícia)

O mais famoso “pioneiro”, porém, é Nandor Hidegkuti, atacante da Hungria campeã olímpica de 1952 e vice-mundial em 1954. No esquadrão magiar, o camisa nove voltava para armar o jogo com o médio Bozsik e atraía um dos zagueiros. No buraco deixado entrava ora Kocsis, ora Puskas, os artilheiros do timaço precursor do 4-2-4 e semente do “futebol total” que só foi parado pela Alemanha na decisão do Mundial da Suíça.

No primeiro gol dos lendários 6 a 3 sobre a Inglaterra no aclamado “jogo do século” em Wembley, Hidegkuti recebe entre os três zagueiros e os dois médios do WM (3-2-2-3) britânico, Kocsis se infiltra como centroavante, confundindo a retaguarda até o camisa nove limpar a marcação à distância e acertar o ângulo do goleiro Merrick.



Ideia exportada com Puskas para o Real Madrid dos anos 1960, mas com um camisa nove que recuava ainda mais brilhante: Alfredo Di Stéfano, “La Sieta Rúbia”. Armava, liderava, servia Puskas e ainda marcava gols. Muitos. Para ser mais exato, 418 em 510 partidas pelo time merengue pentacampeão da Copa dos Campeões, atual Champions League - 1956 a 1960.

Olho Tático
No Real Madrid dos anos 1960, Di Stéfano recuava e Puskas entrava na área para concluir.
No Real Madrid dos anos 1960, Di Stéfano recuava e Puskas entrava na área para concluir.

Quatorze anos depois, outro gênio tático, desta vez reunindo talento, eficiência e protagonismo, encantaria o mundo no Ajax, no Barcelona e, principalmente, no “carrossel” holandês de 1974: Johan Cruyff. Sua filosofia resume seu legado para o esporte: “Jogo 85 minutos para o meu time e cinco para mim” ("As melhores seleções estrangeiras de todos os tempos", de Mauro Beting)

No revolucionário time de Rinus Michels, recuava ainda mais que seus antecessores. Muitas vezes até a zaga, como na arrancada que terminou no pênalti que sofreu na final da Copa de 1974 na Alemanha e foi convertido por Neeskens, apesar da derrota de virada por 2 a 1. Circulava por todo o campo, participava da incrível marcação por pressão e da intensa troca de posições em espaços curtos.. Em números, a Holanda atuava no 4-3-3. Mas não é absurdo definir o desenho de Michels como 4-3-Cruyff-2.

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Flagrante de Cruyff como último homem da Holanda na final da Copa de 1974.
Flagrante de Cruyff como último homem da Holanda na final da Copa de 1974.

No Brasil, por analogia, é possível afirmar que Tostão foi o primeiro “falso nove”. Não na seleção de 1970, mas no Cruzeiro um ano antes. Vestia a camisa oito – a nove era trajada pelo volante Zé Carlos – e o esquema era o 4-2-2-2 , o primeiro da história, armado pelo técnico Gerson dos Santos. Jogava mais avançado, porém voltava abrindo espaço para Dirceu Lopes, o outro meia de criação que se juntava aos ponteiros Natal e Rodrigues na frente ("Futebol passo a passo - Técnica, tática e estratégia", de Bebeto, Valdano e Paulo Vinícius Coelho).

Olho Tático
Cruzeiro de 1969 no 4-2-2-2 com Tostão alternando com Dirceu Lopes na frente.
Cruzeiro de 1969 no 4-2-2-2 com Tostão alternando com Dirceu Lopes na frente.

Sócrates foi mais um “falso nove” em terras brasilis. Em 1979, foi campeão estadual alternando com Palhinha pelo Corinthians e em alguns períodos na seleção – inclusive na Copa de 1982, quando Paulo Isidoro substituía Serginho Chulapa – revezando com Zico. Inteligente, virtude comum a todos que cumpriram e cumprem a função, sabia distinguir o momento de armar jogadas e a hora de entrar na área como autêntico centroavante.

Olho Tático
Sócrates e Palhinha revezavam como 'falso nove' no Corinthians campeão paulista de 1979.
Sócrates e Palhinha revezavam como 'falso nove' no Corinthians campeão paulista de 1979.

Outro ídolo corintiano jogou de forma parecida no primeiro título brasileiro do clube, em 1990. Neto, por suas limitações físicas, era o homem mais avançado do time comandado por Nelsinho Baptista na recomposição. Tudo para poupar fôlego e pernas que decidiam com lançamentos e cobranças de falta. Quando o Corinthians recuperava a bola, Neto voltava para armar, normalmente pelos lados em uma “zona morta”, e o trio Fabinho, Tupãzinho e Mauro (ou Paulo Sérgio) o ultrapassavam. Assim saiu o gol do título na vitória sobre o São Paulo, marcado por Tupãzinho, um meia usando a camisa nove.

Olho Tático
Neto era o camisa dez do Corinthians de 1990, mas jogava à frente do trio ofensivo.
Neto era o camisa dez do Corinthians de 1990, mas jogava à frente do trio ofensivo.

Curiosamente, a movimentação foi repetida dezessete anos depois, mas na Itália. A Roma de Luciano Spaletti deixava o ídolo Totti à frente na hora de defender. Bola roubada, o camisa dez giallorosso recuava e Perrotta pelo meio e os brasileiros Mancini e Taddei pelos flancos formavam o tridente ofensivo.

Olho Tático
Na Roma de Spalletti, Totti recuava e armava para Mancini, Perrotta e Taddei.
Na Roma de Spalletti, Totti recuava e armava para Mancini, Perrotta e Taddei.

Em 1985, para abrigar o já veterano Roberto Dinamite e o garoto Romário no mesmo ataque, o treinador Antonio Lopes deixava o maior ídolo da história do Vasco à frente sem a bola e fazia o goleador máximo da história dos Brasileiros com 190 gols recuar para que o Baixinho entrasse em diagonal a partir da esquerda. "O paralelo com a movimentação do Messi é perfeito. O Roberto não participava da marcação e só voltava para armar as jogadas. Isso confundia os zagueiros, que não sabiam a quem marcar e o Romário entrava na diagonal", lembra Lopes.

Olho Tático
Para encaixar Romário no ataque, Antonio Lopes recuou Roberto Dinamite.
Para encaixar Romário no ataque, Antonio Lopes recuou Roberto Dinamite.

No ano seguinte, Maradona desequilibrou na Copa de 1986 também pela liberdade concedida por Carlos Bilardo no 3-3-2-2 argentino. Até Valdano, típico atacante, podia ganhar atribuições defensivas – como na final da Copa do México, quando perseguiu Briegel, o vigoroso e ofensivo lateral alemão. Já Diego ficava à frente quando a albiceleste perdia a bola e girava por todo o campo para conduzir sua equipe ao bi mundial e seu nome para o Olimpo do futebol.

Olho Tático
Maradona era o único com liberdade total na Argentina campeão mundial de 1986.
Maradona era o único com liberdade total na Argentina campeão mundial de 1986.

Saltando no tempo, mas ficando na Argentina, voltemos a Messi. O deslocamento para o centro do ataque se consolidou na temporada 2010/2011. Mas a “gênese” do novo posicionamento do craque no Barça se deu em 2009, no início da Era Pep Guardiola, ex-jogador e herdeiro da filosofia de Cruyff.

Na histórica goleada por 6 a 2 sobre o Real Madrid no Bernabéu pela liga espanhola e nos 2 a 0 sobre o Manchester United que valeram a Liga dos Campeões, Messi enlouqueceu as defesas trocando com Samuel Eto’o, que foi jogar à direita, e aparecendo na área para marcar um improvável gol de cabeça sobre Van der Sar. Em 2011, recebeu entre as linhas do time comandado por Alex Ferguson para marcar o segundo gol e encaminhar os 3 a 1 em nova final continental.



No time comandado por Tito Vilanova, Messi é mais centroavante que “falso nove”. E na seleção argentina comandada por Alejandro Sabella, alterna com o posicionamento de “enganche”, armando e finalizando como um autêntico “ponta-de-lança” de tempos mais remotos.

Sem poder contar com Messi, que recusou a naturalização espanhola, o técnico Vicente Del Bosque, por conta da má fase de Fernando Torres e da séria lesão de Villa, encontrou em Cesc Fábregas o jogador capaz de se posicionar no comando do ataque, mas transitar por todo o campo. No “tiki taka” dos bi europeus e campeões do mundo, Fábregas é o elemento facilitador para que Xavi e Iniesta brilhem na mesma proposta de jogo do Barcelona.

Olho Tático
Na Espanha campeã da Euro 2012, Fábregas joga à frente como referência para Xavi e Iniesta.
Na Espanha campeã da Euro 2012, Fábregas joga à frente como referência para Xavi e Iniesta.

E Neymar? Seria um “falso nove” na seleção brasileira?

No rigor do conceito, não. Mesmo que Mano Menezes use o termo nas entrevistas. Em alguns momentos, de fato, a Joia santista recua para articular e aciona os meias que aparecem de trás. Assim saiu o primeiro gol de Oscar sobre o Iraque. Mas mesmo neste lance, o camisa 11 se desloca para a esquerda e recebe a bola, mas sem sair da zona de marcação da última linha defensiva.



Neymar abre para receber e entrar em diagonal ou abrir o corredor para Kaká, Oscar ou um dos volantes. Ou seja, é um atacante que joga mais avançado sem ser centroavante de ofício.
 
A movimentação lembra a de Muller no São Paulo bicampeão intercontinental 1992/93, que abria e permitia que Raí, depois Leonardo, e Palhinha entrassem pelo meio. Ou Tostão, agora sim, no Brasil de 1970: ficava no ataque, mas sempre procurava a esquerda para trabalhar com Rivellino e Gerson e abrir espaços para Pelé e as entradas de Jairzinho em diagonal.

Olho Tático
Na seleção de 1970, Tostão era atacante que procurava o lado esquerdo abrindo espaços.
Na seleção de 1970, Tostão era atacante que procurava o lado esquerdo abrindo espaços.

A seleção de Mano não está mais ou menos moderna por contar ou não com um “falso nove”. Talvez seja a falta de um legítimo para seguir a refinada linhagem Reinaldo-Careca-Romário-Ronaldo. No talento e potencial, Neymar pode se equiparar jogando diferente.

Não como um dos muitos craques táticos que cumpriram ou cumprem função tão complexa, solidária e coletiva. Mas sendo simplesmente Neymar.