terça-feira, 11 de outubro de 2011

México: retratos de uma tragédia

O Brasil enfrenta o México na casa do adversário, em Torreon. Mais alguns dias e teremos o Pan de Guadalajara, cidade tão brasileira desde 1970. Por alguns momentos, teremos o México novamente no noticiário por outras razões que não narcotráfico, mortes, decapitações, terrorismo...

É o México. O México rebelde, o México que povoa nossos corações e mentes desde sempre com uma das mais ricas histórias entre tantos países. Do território subtraído pelos Estados Unidos, da Revolução que inspirou o mundo por décadas, dos filmes, da cultura. Hoje tão tristemente mergulhado numa crise que vai transformando o país refém do narcotráfico. O país que, dito por um mexicano, como contamos no texto anterior, inaugurou a frase “tão longe de Deus, tão perto dos Estados Unidos...”.

Rodei o país há alguns anos atrás dessas histórias e realidade nova. Da única forma que entendo esse ofício: com o pé na lama, ouvindo e conversando com todo mundo, sentado no pé-sujo, na estrada, na rua. Como contei da Costa Rica, publiquei essas lembranças desse México num site que era uma brincadeira séria de bons amigos, além de ter entrado a reportagem no DOC “Os Mercadores de Talentos”. Algumas dessas lembranças seguem abaixo. Relendo, voltam todos os personagens, suas dores e tragédias, tão claras ainda em minha mente. Os cheiros, as cores do México, as dores e as delícias, como diria o outro...


FAMINTOS DA AMÉRICA LATINA: UM PROBLEMA PARA O GUARDA DO PRÓXIMO TURNO


O velho relógio parece cansado de guerra, com preguiça de fazer o tempo passar. Preso a parede da rodoviária de Monterrey, no México, tem ponteiros lentos, como se avisassem a impossibilidade de andar mais rápido, talvez pelo calor do ambiente. São três horas da tarde. O guarda parece empurrar com os olhos os tais ponteiros, como quem reza para que mais um quarto de hora se passe. Às 15h15, o ônibus com direção a Nuevo Laredo, na fronteira com o estado americano do Texas, irá partir. Uma rápida conversa com o homem da lei e a curiosa pressa é entendida, ainda que não deixe de ser curiosa. Assim que o ônibus partir, o contingente de quarenta imigrantes ilegais deixa de ser um problema dele. Lava suas mãos, e torce para que o carro velho cruze logo a fronteira do estado de Nuevo Leon e adentre Tamaulipas, onde está a cidade de Nuevo Laredo. Uns duzentos e poucos quilômetros.

“Cumpadre, assim que cruzarem a divisa, são problema de outro estado. O colega de Tamaulipas que se ocupe. Aqui já não há lugar para tantos imigrantes ilegais a caminho dos Estados Unidos que chegam todos os dias. Tampouco as cadeias comportam mais. Nem prender estamos podendo mais. Quando partirem no ônibus, é problema de Tamaulipas”, conta, com absoluta normalidade, interrompida apenas com mais uma olhada para o relógio. No ano anterior foram 2.500 ilegais levados para as cadeias de Monterrey, acabando com os lugares para os criminosos daqui. Para que não exista dúvida sobre o que fala, ilustra com uma história definitiva.

“Você conhece a história do ônibus que fez um tour com dezenas de imigrantes ilegais? Saiu aqui da rodoviária de Monterrey. Andou 45 quilômetros, até o município de Doctor González, quando o carro foi detido com 42 pessoas. Hondurenhos, salvadorenhos, nicaragüenses, e até dois brasileiros, amigo”, frisa bem, parecendo se divertir com o interlocutor antes de continuar, não fosse a desgraça comum. “Levaram todos para a divisão de imigração. Não tinha lugar. Foram para a delegacia de Doctor González. Não tinha lugar. Levaram para San Nicolas, nos arredores. Imigração, polícia, nada. De novo para o ônibus e volta pra Monterrey. Imigração, polícia e como aqui é maior, Polícia Federal Preventiva. Nada. Levaram para o Parque Alamey, onde disseram ter uma cadeia com lugar. Chegou lá, o ônibus da véspera já tinha ocupado os lugares. Monterrey não tinha lugar tampouco. Bota no ônibus de novo e leva pro município de Santa Catarina, aqui perto. Sem lugar, volta pra Monterrey. Então aqui chegou a ordem: deixa seguirem pra Tamaulipas, que lá é problema deles. Agora, deixamos que sigam”, conta, sem conter uma longa risada, que explica a atual preguiça mesmo diante da certeza do contingente de indocumentados.

Finalmente o tempo percorre o tal quarto de hora. Sua missão do dia está cumprida: tocou o problema adiante. Por hoje, não existe mais problema, quer dizer, só no próximo ônibus, daqui a quatro horas. Mas esse já não é mais um problema dele, afinal, seu turno está acabando.
“Cumpadre, quando o próximo ônibus para Nuevo Laredo encostar, estarei diante da TV assistindo ao jogo dos Sultanes. O problema passa a ser do próximo guarda”, encerra novamente, pensando no beisebol da noite com absoluta normalidade, novamente interrompida apenas com mais uma olhada para o relógio.

O ônibus ganha a “carretera” e vai cortando o México. A paisagem da janela evoca alguma poesia, gatilho de lirismo certamente disparado com a visão da Sierra Madre. Impossível, diante da visão, não se perder em memórias e confundir realidade e ficção com a lembrança de Humprey Bogart cruzando aquelas matas em “O Tesouro de Sierra Madre”. As situações limites da condição humana, ambição, cobiça, vaidade, encenadas em um clássico de John Huston...Impossível não abandonar por algum tempo o outro drama da condição humana, todas as situações limites, fome, saudade, desespero, espalhados em carne e osso por 40 poltronas, vizinhos, ali, naquele expresso Monterrey-Nuevo Laredo. Por mais fortes que sejam as lembranças ativadas pela Sierra Madre, o drama da poltrona ao lado interrompe logo o olhar perdido.

A viagem segue, sempre acompanhando as eternizadas encostas da Sierra Madre. Qualquer conversa travada com os companheiros de viagem encontra sempre histórias parecidas. São salvadorenhos, hondurenhos, nicaragüenses, em busca de uma expressão que parece mágica em seus corações e mentes: “o sonho americano”, repetido freqüentemente por cada um, que sempre carrega alguma história de amigos ou parente embarcados nesse sonho: limpadores de banheiro, descascadores de batata, vistos como heróis para quem nada restou em seu próprio país.

O ônibus passa incólume pela primeira barreira de policiais, que indica a proximidade de Nuevo Laredo. Conhecedores da lógica daquele caminho explicam que é assim mesmo, por amostragem. O próximo ônibus deve ficar, mas ainda tem uma parada na aduana antes de chegar a última cidade da fronteira mais famosa do mundo, aquela que o divide em dois: ao norte, a primeira classe do planeta, ao sul, os de terceira.

Estão certos. O ônibus é parado na aduana. O que vem a seguir é uma grande ironia. Os únicos retirados: talvez os dois únicos com documentação legal ali. O repórter e o cinegrafista. O policial federal manda o ônibus seguir viagem, os dois ficam para interrogatório.

Uma salinha de dois metros quadrados é o palco. Quatro soldados estão ali. Pouco educados, querem saber que reportagem é aquela. Nada os convence. O claro temor é o de alguma reportagem investigativa sobre narcotráfico. Nuevo Laredo é o principal ponto de passagem da fronteira México-Estados Unidos. Trinta e seis por cento da atividade comercial entre os dois países passam por ali, e cerca de cinco mil carros por dia, além de passageiros a pé nas quatro pontes que estão acima do Rio Bravo (para os americanos, o rio se chama Rio Grande). Isso claro, sem contar os ilegais, muitos deles tristemente representados nas cruzes sobre a cerca que inibe passagem de ilegais. No ano passado, cerca de 400 morreram afogados, tentando cruzar o rio, mais de um por dia. Por ano, mais de 400 mil mexicanos deixam a pátria-mãe para tentar embarcar no tal sonho, fora outros tanto latino-americanos.

A resposta de estarmos ali para reportagem de esportes soa quase como um deboche para os quatro agentes. Mesmo sendo verdade, era difícil mesmo crer.

Nuevo Laredo é umas das regiões mais violentas do mundo. Fácil entender. A dois passos do paraíso do consumo das drogas, sua localização fronteiriça vale ouro. Em meio a disputa sangrenta do “Cartel do Golfo” e seu braço armado Los Zetas contra o rival “Cartel de Sinaloa”, vive uma cidade que deve ter sido pacata um dia.

Dominar Nuevo Laredo hoje é ter o controle das drogas que chegam aos Estados Unidos. Um negócio de riscos calculados, já que apenas 10% dos carros passam por revista, e um exército de imigrantes famintos está disponível para ser o portador das drogas na travessia.

Nesse cenário, onde recentemente todos os agentes da polícia foram afastados por indícios de envolvimento com o narcotráfico e corrupção, faz sentido que o jogo esteja pesado para dois jornalistas brasileiros alegando estarem em missão esportiva. Numa tentativa de afastar os intrusos, tentam um número que devem sempre repetir: mostram um jornal popular da cidade, com quatro presuntos decapitados na capa e dizem: “Olhem o que acontece com intrusos por aqui”. O esquete prossegue, ainda que meio canastrão, a própria novela mexicana. Discutem entre eles a melhor solução. Argumentam, dão risadas. Extraditar ou levar os repórteres para a prisão? Sem nada mais concreto amparando (como também se ali, naquele pedaço, fosse possível se fiar na legalidade das decisões...) a discussão, resolvem dar uma chance: “vocês vão fazer a reportagem de vocês, as imagens do Rio Bravo que querem. Mas se amanhã não estiverem de volta, fora do estado de Tamaulipas, vão direto para a cadeia. Os passaportes ficam, pegam na volta, de saída”.
Na impossibilidade de recusa, o acordo é aceito. Ainda que 24 horas pareçam muito pouco para mostrar um mundo de personagens e histórias que reescrevem o profético título de Eduardo Galeano, concebido há mais de 4 décadas. São as veias abertas da América Latina, pulsando e sangrando, abaixo do Rio Bravo.

Um dos grandes personagens ali possivelmente seja mesmo o Rio Bravo. Águas que dividem o mundo. A bandeira mexicana de um lado, a americana de outro. Poucos metros, e uma distância tão abissal... As cruzes falam por si.

O sol inclemente e sua luminosidade não assustam alguns que se aventuram em plena luz do dia a tentar a travessia, aproveitando um raro período de águas baixas. Sabem que aquele é apenas mais uma parte do desafio, que muitas vezes começou no vagão de carga do trem que vem desde El Salvador, Nicarágua ou Honduras, no qual milhares sobem e segue viagem no teto, sem qualquer proteção.
As cenas são de filme: de tempos em tempos, alguém se joga nas águas do Rio Bravo e deixa para trás uma pátria, uma família, um lar, sem nada de concreto do outro lado do rio, talvez na crença, tal e qual o autor da música, apenas de “acreditar ter visto uma luz, do outro lado do rio”. Uma simples crença já parece suficiente para quem não nada tem. Se tudo der certo, não ficarem presos na margem sul, conseguirem cruzar o rio, não acabarem presos na margem norte, cruzarem os dias de deserto a sol e sol, começam as dificuldades. Imagens gravadas, as tais horas parecem cada vez menores e insuficientes para tanta coisa a ser vista, tanto a ser mostrado.

Saindo do rio, descendo a principal avenida da cidade, chega-se a “Casa Del Migrante Nazareth”, da Diocese de Nuevo Laredo.
É uma visão estarrecedora. Cerca de cem pessoas, na maioria homens, visivelmente no auge de suas capacidades produtivas, encostados no chão, deitados, esperando o tempo passar. Um coletivo de deserdados, filhos da divisão do mundo, que determinou a sorte de cada lado do Rio Bravo, a sorte de cada um. Todos com a mesma história: vindos de trem das cidades centro-americanas, chegaram ali para cruzar o rio. Por algum motivo, não conseguiram. Seja o nível das águas, polícia, picada de cobra. Como já não há lugar na cadeia, e cada guarda passa o problema adiante, ficaram vagando pela cidade, adiando por alguns dias nova tentativa.

Para piorar o que parece não ter como piorar, muitos contam serem vítimas de extorsão do pouco dinheiro que carregam por parte da polícia local.
“Nem documento temos, visto. Eles sabem que não podemos reclamar. Vamos para a delegacia reclamar? E ficamos por falta de documento? Ora, somos o alvo mais fácil para sermos roubados”, contam.

Urinelson Lopes pegou o teto do trem na sua Guatemala. Tem mulher e filho em Los Angeles, conseguiram ir há 3 anos, tempo que não vê e poucas notícias tem dos seus. Já não lembra direito do rosto do menino Pablo, que viu pela última vez quando ele completou um ano. Espera agora cruzar o rio, o deserto e de alguma forma chegar na cidade dos anjos. Sabe que sua mulher é faxineira de uma lanchonete, espera sorte igual.

“Já não tinha mais nada pra fazer em meu país. Só restou a fome por lá. Não tinha outra opção. Há 3 anos juntei o dinheiro para um coyote atravessar minha mulher e filho, primeiro eles para se salvarem. Agora juntei e tento eu. Na primeira tentativa, fui visto por um helicóptero quando ainda chegava na margem de lá. Agora vou esperar a água baixar e vou. O que me resta?”, pergunta, diante do silêncio.
Silêncio maior é causado por Luís Francisco, hondurenho, 27 anos. O mais solícito entre a massa faminta que deixou qualquer tentativa de entrevista ao sinal da hora da sopa, uma água rala distribuída uma vez por dia pela igreja. Parece ainda mais melancólico diante do microfone. Difícil decifrar tal tristeza em sua expressão.

“Chegar até aqui já foi muito difícil. Mas não existe em meu país outra opção. Não há trabalho, só existe a fome”, conta Luís, que ia tentar cruzar o rio novamente naquela noite.
Entrevista encerrada, chama a equipe num canto. Pela primeira vez esboça um sorriso, ainda que tímido. “Fiquei feliz em ver um colega de profissão. Sou jornalista também, trabalhava em um jornal em Honduras, mas há dois anos quase toda a redação foi mandada embora. Só me restou essa opção”, conta.

As horas de prazo dadas pelo agente federal vão chegando ao fim. Nem era preciso. Agora parecem uma eternidade. Hora de ir embora. Mais do que hora. O nó toma a garganta. Impossível seguir normalmente, guardando distanciamento, como se tudo estivesse do outro lado do rio, ou mesmo como se tudo fosse apenas um problema para o guarda do próximo turno.