terça-feira, 2 de outubro de 2012

Cusparada, agressão, choro e a polícia imóvel. O absurdo no Couto por quem estava lá

 incidente envolvendo o meio-campista Lucas, do São Paulo, um grupo de torcedores do Coritiba e a garota Millena, de 13 anos, foi uma das cenas tristes do futebol no Brasil neste fim de semana. Apenas uma, entre outras lamentáveis como a censura às faixas de torcidas nos Aflitos e no Pacaembu e o episódio do escocês com a camisa do Celtic, hostilizado entre a torcida do Corinthians por usar a cor verde.

Dentre todos estes, o do Couro Pereira, em Curitiba, teve as imagens mais chocantes. Mas ainda mais triste é o relato de quem estava lá. O texto abaixo é um desabafo do colega Rodrigo Salvador, que estava no estádio a poucos metros da confusão. 

O texto foi escrito por ele horas após o jogo, ainda sob o choque das cenas que acabara de ver. Mantive todas as palavras, incluindo palavrões. Não se pode editar o sentimento de um torcedor de verdade.
“Vou tentar descrever aqui o que vi nesta tarde de domingo com a maior riqueza possível de detalhes, inclusive o que não será lido em nenhum outro lugar. Porém, peço que relevem alguns exageros que possam aparecer. Não estou nada bem, emocionalmente falando, depois do ocorrido.

Eu sou torcedor da arquibancada do Coritiba. Durante o jogo, xingo até aquele jogador que gosto, e declaro amores por pernas de pau que vestem nossa camisa. Não me policio muito quanto a isso mas tendo sempre a fazê-lo com bom humor, e assim o futebol me faz bem. Como parte disso, tenho muitos costumes: o "dog da vitória" depois do jogo, o meu lugar marcado onde não tem lugar marcado, a pichação "VAMO COXA" que sempre leio em voz alta quando indo pro estádio, não sair antes do último jogador adversário descer pro vestiário (de preferência xingando). Hoje eu devia ter deixado essa última de lado.
Gazeta Press
Lucas durante o empate do São Paulo com o Coritiba
Lucas durante o empate do São Paulo com o Coritiba
O último jogador era Lucas. Dos 15 mil presentes, restavam no máximo mil, mais os são-paulinos que esperavam pra sair. Era só ele descer que eu ia pra casa. Eis que ele veio, com a camisa na mão, na direção da arquibancada. "Leva essa merda pra lá, ninguém quer isso aí não", gritei. Mas alguém queria. A Milena, de uns 13 anos, realmente queria aquela camisa. Pausa. Me reservo o direito aqui de dizer que ela e o Lucas podiam ter evitado a situação fazendo a entrega em outro local, não em um local onde sequer um boné vermelho é socialmente permitido. Mas como ela é a vítima e os culpados são criminosos, relevo esta falha. Play.

Lucas apontou pra Milena, que estava acompanhada pelo pai e por um irmão mais novo. Tomou cusparadas. Sequer olhou na cara do nojento, e seguiu conversando com ela. Eu, que estava no segundo anel, logo acima do alvoroço, conseguia ver o cuspe no ombro dele. Mesmo assim, julgando que a menina receberia um respeito que ele não teve, jogou a camisa. Logo chegou um elemento apontando pro fosso e gritando "joga lá". Mais dois, os cuspidores, também gritaram. O pai tentou em vão proteger a menina enquanto dúzias corriam na direção deles.

Veio o primeiro tapa na cabeça do pai. A menina gritava e chorava, desesperada, não tinham por onde sair. Alguém meteu a mão na cara do pai e tirou os óculos da cara dele. Mais gente correu pra lá. Quase um minuto de confusão se passou quando três homens da segurança contradada do estádio (não policiais) tentaram interromper a confusão - esta segurança trabalha no Couto desde o famoso episódio de 2009, sao cerca de 200 seguranças - mas não conseguiram chegar até a menina. Neste momento, procurei por policiais e vi 6 deles, a aproximadamente 10 metros da confusão, totalmente imóveis. No olho do furacão, um homem tentava arrancar a camisa à força da mão da Milena. Olhei pro campo e vi o Lucas voltando até a arquibancada. Sem ter por onde sair, a garota devolveu a camisa pra ele. Já sem a camisa em mãos, ela, o pai e o irmão saíram, ela chorando e o pai gritando pra ninguém. Passaram ao lado dos policiais que citei, que permaneceram imóveis.

Olhei pro lado e outra dezena de homens de marrom vinham tirar a torcida do estádio. "Poxa, vocês podiam ter escoltado a garota ali, né?", falei pra um primeiro, que me ignorou solenemente. Repeti a pergunta pra outro, que me deu atenção: "A gente tava aqui em cima, não dava pra descer". "Tá, mas então seus colegas, que tavam parados ali pertinho", apontei. Não lembro exatamente qual foi a desculpa do rapaz, visivelmente desnorteado, falando quase pra dentro. Sabendo que ele me dava atenção, aumentei o tom de voz: "Eu amo futebol, mas tem que aguentar essa porra aí". Olhei pra outro: "E vocês não fizeram nada". Na mesma hora, um superior deles apareceu ali: "Vocês estavam aqui na Império no jogo? Tavam?" "Sim senhor" "E porque não desceram ali hein? Eu tava na Mauá, mais longe que vocês, e fui pra lá, porra!". Eu não tinha mais nada pra ouvir, dei um tapa nas costas de um deles e fui indo embora. Na saída, passei por onde tudo aconteceu e vi alguns policiais. Parei pra contá-los, sem disfarçar, apontando mesmo. Eram 21. Homens e mulheres, todos armados e em condições de no mínimo escoltarem a menina na saída do Couto.

O que o mundo pede hoje são muitas notícias curtas, onde se pode saber um pouquinho sobre tudo. Assim, nós só sabemos de fato o que envolve um evento quando buscamos mais informações. Quem ver o vídeo, vai ver uma cena grotesca dos ditos torcedores do Coritiba, e com razão os repudiará. Eu, presente ao local, fiquei abalado com a reação dos torcedores, mas ainda mais com a falta de reação da polícia. Afirmo sem medo de errar que me dá muito mais medo ver a inércia da polícia - inesperada - do que a brutalidade da torcida - já sabido que existe em qualquer estádio do país. Pra piorar, vi muitos torcedores dizendo que a culpa é TODA da menina que fez o que fez onde não podia, justificando um erro com outro. Eu não dou razão a ela, mas nem por isso defendo os animais ou faço vista grossa à vista grossa da polícia. E espero, sinceramente, que o clube faça o mesmo, já que não é difícil identificar os desgraçados.

Quarta-feira tem Copa do Brasil sub-20 no Couto, quinta tem Brasileiro no Couto, eu devo estar lá. Mas já não sei dizer pra quem torço, não sei se estou seguro. Não sei se o bandido veste verde e branco ou marrom e preto, mas sei que ele está lá. Me perguntam se a Milena continuará torcendo pro Coxa, eu acho que nunca torceu. Ela conseguiu a camisa que queria. O trauma do momento, os tapas na cabeça do pai, os óculos roubados, isso vai ficar na memória. Na deles e na minha, que gosto mais do esporte que do meu time, o que parece ser um pecado lá na arquibancada. Se quiser continuar amando futebol, terei que fazê-lo aguentando essas porra aí.